quinta-feira, 21 de julho de 2005

Para que se não esqueça! - Parte IV

Quase imperceptivelmente o tempo vai aquecendo e uma madrugada sussurra-se por todo o navio, Chegamos, chegamos a áfrica, e todos se levantam para ver essa terra remota e estranha que lhes dizem também ser portugal e estar ameaçada. Ameaçada por um bando de pretos mal agradecidos, cães que mordem a mão do dono, de quem os tirou da barbárie e lhes levou deus e civilização, os turras. Cuidado com os pretos, dizem-lhes, Cuidado com os pretos, não lhes dêem confiança que qualquer filho da puta dum mainato pode ser um turra disfarçado, um espia. Se abusarem arreiem-lhes e cuidado com as pretas, são todas umas putas, animais com cio, cadelas saídas, ponham-se a pau com os esquentamentos.
E amanhece em áfrica e sobem a bordo cheirosas senhoras bem, piedosas senhoras bem, só os vestidos são mais leves e a pele mais morena, uma banda toca marciais marchas, desta vez não há lenços brancos a acenar, só os capacetes da polícia militar.
O corneteiro toca a formar, pelotão, companhia, desce-se o portaló do navio e gritam-lhes, Toca a despachar seus checas de merda, toca a subir para as berliets.
No cais não se reconhece ninguém.
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Eu não me lembro, não vivi a guerra, só sei de ir à escola e fugir para o rio e roubar mangas e papaias. Talvez não tenha sido bem assim, mas é assim que eu recordo as palavras dos que lá estiveram e me contaram. Do resto só sei o que li, porque os que me contaram, chegando aqui, puxam do baú da memória de velhas estórias de copos e putas e impalas abatidas a tiro de g3 e de súbito recordam o 29, O gajo de mangualde ou será que era de manteigas, O gajo era lixado para a paródia, uma vez íamos na picada e ..., e embaciam-se-lhes os olhos, embarga-se-lhes a voz e emudecem. E eu não insisto.
Talvez um dia, quando o peso dos anos e o tempo tiverem amainado a sua dor e sentirem necessidade de revelar aos seus netos o que aconteceu, talvez nesse dia me contem e eu então contarei, para que se não esqueça...
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foto: Centro de Documentação 25 de Abril - Universidade de Coimbra

8 comentários:

Madalena disse...

Um beijinho, Magude!
Eram estes os homens que eu via passar com olhar perdido, antes de embarcarem novamente para o a guerra... para o norte, para o fim do mundo e da vida. Às vezes, regressavam, inteiros de corpo, mas de alma desfeita, bombardeada, amputada e isso também se via nos olhares.
Desculpa, tenho de ir, há memórias que eu não aguento!

th disse...

Tanta coisa errada e ainda o obscurantismo, a repressão, a manipulação de massas...há marcas que deixam eternas mágoas...beijo, th

Anónimo disse...

Obrigado amigo.
Foram tantas as recordações dos amigos que lá morreram, e dos amigos que de lá voltaram,que quando os recordo a garganta se me aperta e a lágrima escorre.
Aquilo era mesmo assim.
Vou tirar cópia para as minhas filhas lerem,e compreenderem porque é tão doloroso falar daqueles dois anos da minha vida,e não me olharem sem perceberem porque ainda hoje choro ao falar desses amigos,os mortos e os que regressaram com vida.
Mais uma vez OBRIGADO

Carlos Gil disse...

Navios negreiros duma juventude. Obrigado Magude, "para que se não esqueça"

Mitsou disse...

Também eu agradeço, Magude.
Só agora descobri o teu blog (já não era sem tempo :) Beijinhos, amigo!

Pitucha disse...

Bons posts.
A guerra colonial, que também não vivi, é um tema que me fascina. Creio que, com facto histórico, ainda não está muito trabalhado pelos historiadores.
Talvez porque ainda haja memórias demasiado vivas e dolorosas...

Anónimo disse...

E eu também: OBRIGADA! - abraço comovido, IO.

ELCAlmeida disse...

Carne para canhão a juntar-se à carne que já lá estava.
Cumprimentos
Eugénio Almeida