quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Relações entre Estado e Cidadão

Ao ouvir esta tarde Vítor Gaspar recordei certa discussão académica em que participei, havida nos idos de 80, na Faculdade de Direito de Lisboa, numa das célebres “catacumbas” onde decorriam as aulas das subturmas, acerca da reciprocidade na relação entre o Estado e o Cidadão. O Professor, após afirmar que “O Estado é, de facto, Pessoa de Bem”, acrescentando a este douto raciocínio, “o Estado é bom pagador e paga sempre”, desafiou-nos a contestar este conceito. Regresso hoje ao assunto.
 
O Cidadão, ao lidar com o Estado (não vou aqui entrar na questão técnica, por árida e na essência apenas hipotética, das qualidades objectiva e subjectiva do indivíduo), deve presumir que trata com Pessoa de Bem. Do mesmo modo o Estado, nas suas relações com o Cidadão, deve assumir a igual presunção. A Constituição da República, instrumento fundamental na regulação deste “status quo”, atribui nesta matéria, tanto ao Estado quanto ao Cidadão, um conjunto de Deveres e Direitos recíprocos. Pelo menos em teoria
.
O Estado, ao suspeitar que determinado Cidadão não é Pessoa de Bem, tem ao seu dispor um conjunto de instrumentos, a começar por todo o edifício legislativo, passando por diversos organismos de fiscalização e investigação (Finanças, PSP, GNR, ASAE, PJ, fiscais municipais, etc.), terminando nos organismos judiciais (Tribunais), que lhe permitem aferir essa condição e, caso esta não se verifique, punir o dito em conformidade. O Cidadão tem ao seu dispor o mesmíssimo conjunto de instrumentos para aferir se o Estado é, ou não, Pessoa de Bem. Para além disso, uma plêiade de órgãos tem por obrigação fiscalizar a acção do Estado: o Presidente da República, a Assembleia da República, o Tribunal Constitucional, o Tribunal de Contas, o Provedor de Justiça, etc., para além de responder perante outras tantas instâncias internacionais, como sejam o Tribunal de Justiça da União Europeia ou Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
 
Postos assim, no plano teórico, os pratos da balança parecem equilibrar-se. Confrontados com a realidade, perante a desigualdade de meios quando o Cidadão confronta o Estado, nada do acima exposto se verifica. O Estado de Direito nem sempre é Pessoa de Bem, nem é bom pagador, nem paga sempre. Acentuando ainda mais o fosso neste deve e haver, o Estado arroga-se o direito de penalizar o Cidadão quando muito bem lhe apraz não reconhecendo ao Cidadão o direito de proceder de igual forma.
 
Independentemente da crise que hoje atinge o Estado, a grande constatação é que este enveredou por caminhos diferentes daqueles que deveriam ser a sua razão de ser, ou seja, gerar as condições necessárias para a consecução do bem-estar da sociedade. Como consequência desses desvios o Estado acabou por não atingir o resultado pretendido, que seria a intervenção na economia como forma de acelerar a geração de emprego e renda, reduzindo as disparidades e as injustiças sociais. Como o Estado desviou recursos e energia para outras actividades, fora da sua esfera, e não conseguiu ser um bom empreendedor, criou uma superestrutura autofágica enquanto diminuía a sua capacidade de atender aos investimentos sociais, que foram seriamente prejudicados. A manutenção de empreendimentos com prejuízo e de elevado custo de manutenção onerou em muito o orçamento público e reduziu a capacidade de investimentos sociais.
 
Como na área económica o Estado não conseguiu gerar empregos e renda e as disparidades de renda aumentaram sensivelmente, houve um acentuar das diferenças sociais, com um grande aumento do número de pobres e uma grande concentração de recursos e património nas mãos de poucos. Com isso, aumentou também o número de excluídos sociais, elevando, por sua vez, a dívida social com o segmento mais pobre da população. Agora que se rediscute o Estado e se propõe um redireccionamento do seu foco de acção, exigindo-se maior competência ao sector público, deparamo-nos com uma situação desoladora: os recursos desviados para outras prioridades, por exemplo as Empresas Públicas, geraram uma enorme dívida pública, sendo que os valores empregados são de difícil recuperação.
 
Neste momento em que o Estado precisa de recursos para recuperar o atraso e reduzir a sua dívida para com a sociedade, os recursos são consumidos para honrar os pagamentos os juros da dívida pública, pouco restando para investimentos sociais. Aumentar impostos gerais é inviável, a classe média não tem mais como ampliar sua contribuição, não se consegue vencer as barreiras contra a tributação das rendas mais altas e das grandes fortunas e essa é a situação da grande maioria dos países em desenvolvimento. A sociedade reclama por maior retorno do dinheiro arrecadado pela tributação, sob a forma de benefícios, mas uma boa parte desses recursos está vinculada a pagamentos dos encargos da dívida, que também não gerou benefícios sociais estruturados, consequentes e duradouros na época em que foi constituída.
É muito difícil identificar a origem dos conflitos entre o Estado e o Cidadão, mas o facto é que estes existem, e o comportamento adoptado até agora pelos governantes e pela sociedade só consegue aumentar a distância entre ambos. Governantes e políticos adoptam uma postura de total independência e quase ignorância do Cidadão como centro de interesse de tudo e a razão de ser do Estado, fazendo com que a administração dos recursos e dos bens públicos seja ignorada pela população e tratada como se fossem de propriedade dos usuários do poder. Não há transparência na actuação do poder público e os dados das contas não se encontram disponíveis.
A população, por sua vez, afastada do trato das coisas públicas, sem acesso à informação e sem conhecimento de como o Estado actua, passa a concentrar as suas críticas de forma generalizada sobre os homens que actuam no governo, atribuindo-lhes todas as desgraças e responsabilidades pelas coisas que não estão bem. Esse comportamento de ambas as partes acirra ainda mais os ânimos, e o inconsciente colectivo passa a reger todos os julgamentos e avaliações. Para os governantes, a sociedade não colabora, a maioria dos seus elementos são sonegadores de impostos e só sabem criticar. Para o cidadão comum os governantes e os políticos são na grande maioria desonestos e não administram os recursos públicos na busca do bem-estar da população.
 
A única certeza que temos é que não podemos continuar parados diante da actual situação, com o Estado sendo ineficiente no desempenho das suas funções e atendendo mal ao Cidadão e este, indiferente, omisso e crítico do governo. De pouco adiantaria mudarmos apenas o Estado ou só a sociedade, pois os problemas e desarmonia que inibem o melhor desempenho do governo são causados pelas duas partes. As mudanças que necessitamos e pretendemos devem ocorrer tanto no Estado, na sua forma de funcionamento, como na sociedade, na postura do Cidadão frente ao Estado, exercitando os seus direitos e cumprindo os seus deveres, exercendo o controlo social sobre a ação dos governantes e contribuindo com sua participação para melhores resultados na ação estatal.
 
A reforma do Estado exige uma administração pública mais ágil e competente, centrada na eficiência e na qualidade dos serviços públicos. Isso implica desenvolver uma cultura de governança com ênfase nos resultados. Nessa perspectiva, exigir-se-á um grande esforço das instituições em desenvolver uma rigorosa profissionalização do Serviço Público para se adequar a um novo padrão de gestão pública que será o aporte para novas formas de parceria com a sociedade civil, novos modelos de descentralização e novas concepções e práticas de gestão. Esse referencial demanda um novo perfil do servidor público com ênfase na criatividade, na capacidade de decisão, no desempenho de novas funções, e com capacidade de desenvolver trabalhos de equipa.
 
Em relação às transformações da sociedade, a proposta é ter um Cidadão consciente e capacitado para entender o Estado e o seu funcionamento e a atuação de todos os componentes da sua estrutura, que possa avaliar a actuação dos nossos dirigentes públicos quanto à propriedade e adequação correcta das aplicações dos recursos geridos pelo governo. O objetivo é capacitá-lo para avaliar a relação custo/benefício de cada aplicação, de forma que se obtenha o maior retorno social possível, sempre tendo em vista beneficiar fundamentalmente as camadas da população mais carentes, elevando o bem-estar de todos e atenuando as desigualdades sociais.

Sem comentários: