Esta manhã, no café onde habitualmente tomo a primeira dose de cafeína do dia, entre dois dedos de conversa, alguns clientes iam vendo na televisão as notícias da manhã. No meio de referências a incêndios, índices económicos e o inevitável futebol, o locutor começa a falar sobre o inicio do Ramadão, que hoje tem lugar.
Um dos presentes, perante a notícia, sai-se com um "Pronto, lá vão os monhés andar um mês a passar fome!", logo secundado por outro, "Pois, os cabrões dos talibans não comem, ficam tontos e depois largam a matar gente."
Tomei o café em silêncio, paguei e saí, triste e enojado. Séculos de doutrinação anti-muçulmana (e, já agora, anti-semita), activamente promovida pelas igrejas cristãs, provocaram no comum cidadão ocidental uma crónica desconfiança dos crentes destas religiões. Nada que do lado de lá também não tenha sido feito, levando a que o comum muçulmano ou judeu tenham o mesmo tipo de sentimentos para com os cristãos.
Em meia-dúzia de palavras couberam quase outras tantas asneiras. Corrijamo-las então, por ordem de surgimento no diálogo que referi:
"Monhé" - forma depreciativa aplicada aos indianos, inicialmente na antigas colónias portuguesas, mais tarde por cá vulgarizada. Nada tem a ver com muçulmanos: conheço muitos que professam esta religião, mas conheço outros tantos que seguem o hinduísmo, o budismo e o cristianismo. Já agora, se eu fosse indiano e me chamassem monhé, ria-me e agradecia: o termo deriva da palavra mweney, do swahili (um dos dialectos da língua banto, predominante na costa leste de África), que significa dono ou senhor.
"Um mês a passar fome" - O Ramadão, nono mês do calendário islâmico, acreditam os muçulmanos, foi aquele em que Deus, pela voz do Anjo Gabriel, revelou o Alcorão a Maomé. Como o calendário islâmico é lunar, o Ramadão não ocorre sempre na mesma época do ano, mas neste período os crentes adultos devem abster-se de comer e beber, de fumar, de ter relações sexuais ou pensamentos negativos, entre o amanhecer e o pôr-do-sol. Estão dispensados do cumprimento do Ramadão os idosos, as crianças, os doentes e as grávidas e lactantes. Muito mais do que passar fome, um mito (após o pôr-do-sol, não imaginam os festivais de aromas e sabores em que, não sendo muçulmano mas tendo a honra de ser convidado, já participei), o Ramadão é uma época em que, à semelhança do Natal dos cristãos, se renova a fé, se pratica de forma mais intensa a caridade, se vive mais profundamente a fraternidade e se dá especial relevância aos valores da família.
"Talibans" - palavra do pashtun (uma das línguas faladas no Afeganistão e nas províncias ocidentais do Paquistão), significa literalmente "aqueles que estudam o Livro" (o Alcorão), ou seja, estudantes. Enquanto movimento político e militar defendem a criação de estados islâmicos teocráticos (ou seja, as acções política, jurídica e policial são submetidas ao Islão e toda a lei é transcrita ou inspirada no Corão, sendo o Irão o exemplo mais comum). Tornaram-se conhecidos do mundo ocidental na década de 80 do século passado, ao ajudarem os mujahideen (combatentes) afegãos na sua jihad (não guerra santa, como muitos pensam, mas antes luta, mediante vontade pessoal, de se buscar e conquistar a fé perfeita e de levar a mensagem do Islão aos não crentes) e por apoiarem Bin Laden. Governaram o Afeganistão entre 1996 e 2001, quando foram derrubados por uma coligação de países liderados pelos Estados Unidos. O grupo vem-se reagrupando desde 2004, colhendo a simpatia de muitos muçulmanos de diversas nacionalidades.
Resumindo, nem todos os indianos são muçulmanos, no Ramadão não se passa fome e apenas uma minoria de muçulmanos é taliban.
Tenho o privilégio de, nas contradanças da vida, ter conhecido gente das sete partidas do mundo, de muitas nacionalidades e etnias, de várias religiões e diversos tons de tez, do rosa mais pálido ao castanho mais escuro. Uma infância decorrida em Moçambique, numa vila e numa Escola Primária onde conviviam, sem atropelos, africanos, europeus e indianos, cristãos, hindus e muçulmanos, aliada aos valores de tolerância com que os meus pais me educaram, fizeram de mim uma pessoa que, ao invés de estar sempre de pé atrás em relação ao estrangeiro, ao estranho, busca activamente o contacto com a diferença, na certeza de dele sair mais enriquecido, cultural e emocionalmente.
A maioria dos cristãos quase nada sabe de muçulmanos e judeus e vice-versa. Que digo eu, a maioria dos cristãos de determinada Igreja nada sabe das outras Igrejas que veneram Cristo, sendo o mesmo válido para os crentes das diversas confissões muçulmanas (Xiitas, Sunitas, Ismaelitas, etc.), ou judaicas (Rabínicos, Caraítas, Samaritanos, etc.). A falta de informação, ou, o que às vezes é pior, a informação errada, criam em nós a desconfiança e o receio do outro. Se a isto aliarmos a pobreza de espírito, surgem o preconceito e a discriminação, que podem assumir subtis formas de violência simbólica, como a que relatei, ou extremas manifestações de ódio. A ignorância, envolvendo todas as esferas das relações humanas, é a maior aliada da intolerância.
.
.
imagem daqui: http://www.apoiort.com/
2 comentários:
Magnífico post!
Pena é que os tais indivíduos que estavam no café não o possam ler, nem tenham curiosidade de saber das coisas...
A ignorância é a mãe de todos os males...
Grande abraço Manude!
Mais vale tarde que nunca.
Só hoje tive o prazer de ler o post,pelo qual está de parabèns.
Não conheço o autor, mas pela postura demontrada, é daqueles que defendem valores essenciais.
5*
Enviar um comentário