terça-feira, 9 de março de 2010

Nacional-facilitismo


Como gosto de estar por dentro do que vai acontecendo no país e no mundo, a minha página de abertura da Internet é o "Google News". Um destes dias, ao ligar o computador e ao passar os olhos pelas parangonas, deparei-me com a seguinte notícia:

"Crianças já podem estudar pelo telemóvel: Porto Editora disponibiliza resumos de obras de autores portugueses nos telemóveis e lança versão mobile do site.
Ouça quando não puder ler, leia quando não puder ouvir». É com esta proposta que a Porto Editora disponibiliza análises e resumos de obras literárias portuguesas nos telemóveis dos estudantes.
O objectivo da editora é proporcionar o acesso aos seus conteúdos nos mais diversos suportes, pensando no conforto e nos estilos de vida das pessoas."

Sabemos todos da dificuldade que é tentar que as nossas crianças leiam. Sou pai, sei bem do que falo: apesar de possuir um acervo literário de algumas centenas de livros e de tanto eu como a minha mulher lermos diariamente, não consigo despertar no meu filho o mesmo interesse. Eu até entendo: na minha infância não havia televisão, Internet, Playstation, telemóveis. Restavam-me as brincadeiras de rua, outra espécie em vias de extinção, e a leitura, único meio de dar asas à imaginação. E caramba, como ela voava, primeiro com as fábulas de La Fontaine, os contos de Hans Christian Andersen, mais tarde com as histórias de Salgari, de Verne, de Enid Blyton, fechando os olhos fui de tudo um pouco: príncipe, pirata, soldado, astronauta, detective.

Mais tarde, já no secundário, foram de leitura obrigatória algumas das maiores obras da literatura portuguesa, alguns dos vultos maiores das nossas letras: Gil Vicente, Camões, Garrett, Herculano, Bernardim Ribeiro, António Vieira, Cesário Verde, Aquilino. As obras e autores foram variando, ao sabor do capricho de cada novo Ministro da Educação, de cada nova experiência pedagógica em que os anos 70 e 80 foram férteis. Nesses anos, como hoje, era comum ser-nos pedido que resumíssemos as obras lidas, ou que dissertássemos sobre este ou aquele aspecto das mesmas. Para isso, e na quase ausência de obras comentadas ou resumidas, tornava-se necessária a sua leitura integral e muitas horas de biblioteca, em pesquisa diversa.

Depois, para o melhor e para o pior, chegou a Internet: resumos, comentários, notas, biografias, tudo ao alcance de um clique. A ferramenta de excepção que temos a fortuna de poder usufruir é, na maioria dos casos, usada de modo errado, com a complacência dos professores. E que se não pense que isto é exclusivo do secundário, porque, e falo com conhecimento de causa, o mesmo se passa no ensino superior. Inserida a palavra de pesquisa apropriada, seja qual for o assunto, qualquer motor de busca nos apresenta mil e uma páginas sobre o mesmo. E vai de copiar e colar, sem verificar se a fonte é fidedigna ou não, se o português é do Brasil ou de Portugal. E volto a frisar que isto se passa com conhecimento dos professores, pois não acredito não conheçam o suficiente os seus alunos para não saberem se o trabalho é ou não da sua lavra. Mal seria se a educação em Portugal já tivesse chegado a esse ponto. Porque aceitam então trabalhos totalmente copiados? Porque não os recusam e pedem aos alunos que os façam de novo? Por medo? Por preguiça? Por desinteresse? Sei que não é fácil, nos dias que correm, ser professor. Mas creio também que alguns dos professores de hoje o são não por vocação mas sim por carreirismo, em busca de tacho e futuro certo (embora no caso dos professores isto quase pareça ironia) na Função Pública.

Vem agora uma editora e disponibiliza conteúdos nos telemóveis, segundo afirma, para que as crianças possam estudar usando essa tecnologia. Estudar pelo telemóvel? Alguém de bom senso acredita nisto? Ou não será esta mais uma maneira de copiarem, inclusive durante os testes, algo que já é frequente, mas que ainda dá algum trabalho?

Gostando do toque do papel, do cheiro dos livros antigos, nada tenho contra os chamados livros digitais e quejandos. Antes pelo contrário: sou decididamente a favor de novas tecnologias que levem os livros ao maior número possível de leitores. O que não sou é a favor do facilitismo que vai campeando por aí, do nivelar por baixo, num processo em que nos querem convencer, e aos nossos filhos, que tudo é simplesmente entregue de mão beijada, não os preparando para a competitividade do mercado de trabalho e da vida em todos os seus aspectos.

Em resultado disto, é cada vez mais norma do que excepção encontrar licenciados que não se sabem expressar correctamente na sua língua, com uma cultura geral de uma pobreza franciscana, incapazes de utilizar os conhecimentos que têm quando postos perante situações inesperadas, frequentemente muito bons numa área muito específica do saber e completamente ignorantes a respeito de tudo o resto.

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