quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

"Les uns et les autres"



A esta crónica dá título um filme do início da década de 80, realizado por Claude Lelouche. Tenho dele a memória de ser um musical épico, muito graças à sequência final, ao som poderoso do “Bolero” de Maurice Ravel. É um filme para chorar e rir, em que não há bons nem maus, apenas pessoas que podíamos ser nós mesmos.
Esta não é uma crónica cinéfila, que para tal não tenho arte nem engenho. Por ora, apenas o nome do filme me interessa: uns e os outros. Vós e nós. Os nascidos em Nisa e os que o não são.
Nos últimos tempos corre por Nisa, sussurrada nos espaços públicos ou gritada na cobarde, porém confortável, sombra do anonimato, uma corrente de opinião que discrimina os ditos “importados”, significando isto, presumo eu, aqueles que aqui não nasceram, ou, pelo menos, aqueles cuja árvore genealógica aqui não criou raízes.
Embora a expressão se aplique apenas a produtos e não a pessoas, e se refira a bens que são adquiridos por um país a outro, aceitemos, para este efeito como válido, o conceito de que todos os residentes em Nisa não incluídos nas condições referidas no parágrafo anterior, são importados. Julgo que o autor ou autores da expressão deveriam ter ido mais além na definição, pois pairam algumas dúvidas no meu espírito: é importado que foi mandado vir, digamos contratado por alguma empresa ou instituição, ou quem veio por ser essa a sua opção de vida? São ambos importados? Se sim, qual deles é mais “importado” do que o outro?
Não nasci em Nisa. Que seja do meu conhecimento, nenhum dos meus mais recônditos antepassados alguma vez aqui colocou pé e muito menos semente. Vim para Nisa por razões do coração: através de amigos aqui conheci a minha mulher, e foi por ela que aqui me radiquei. Porque era mais pragmático ser eu, profissional liberal, a deslocar-me de onde então residia para cá, do que ela, comerciante nesta praça, a encerrar o seu negócio.
Gostei da terra desde o primeiro momento, inicialmente apenas aos fins-de-semana, mais tarde por períodos mais prolongados. Agradou-me a sua pequena dimensão e pacatez (nunca gostei da “cidade grande”, talvez fruto da minha infância decorrida em África, numa vila ainda menor), a simpatia das suas gentes, os equipamentos sociais existentes, a sua gastronomia, o seu património. Aqui me instalei pois, de armas e bagagens, para só sair a caminho do forno crematório mais próximo, chegado o devido tempo.
Para memória futura nesta crónica, fica o facto de que a primeira empresa para quem trabalhei em Nisa ser de Vila Real, especializada em Topografia, área em que tenho formação, fazendo parte da equipa que fiscalizou a construção das variantes de Gáfete e Alpalhão. Terminado o contrato com essa empresa (que me propôs novo contrato, recusado, creio que na região de Ovar), e devido à falta de empregos no Concelho, candidatei-me a dois concursos abertos pela Câmara Municipal, para os quais não fui seleccionado. Porque necessitava de trabalhar, tomei de renda um negócio já existente, que ainda hoje mantenho. Para além disso, mais recentemente, tenho trabalhado na área da educação e formação de adultos, numa instituição local. Resumindo, e como diz o povo, investi em Nisa “coiro e cabelo”, e que seja do meu conhecimento, a menos que tenha por aí benfeitor anónimo, não devo favores a ninguém.
Porque desde muito novo estou ligado ao Associativismo e ao serviço comunitário, tornei-me sócio de três associações da terra. Ao serviço de uma delas, colaborei nas mais diversas actividades, umas dirigidas à juventude, outras à população em geral. Graças a ao trabalho aí desenvolvido, em particular no Pedestrianismo, tive a oportunidade e a felicidade de conhecer o Concelho de fio a pavio, a sua riqueza e diversidade. Este trabalho, não apenas o meu mas o de todos os outros voluntários, foi feito à custa do sacrifício de muitos milhares de horas, de muitas centenas de quilómetros a pé, de alguns aborrecimentos com a família e, porque não dizê-lo, com muito dinheiro do meu próprio bolso. O que ganhei com isto? O orgulho de dar a conhecer a terra aos de fora e aos dentro, a satisfação de ser cumprimentado por um trabalho bem feito, a sensação de bem-estar que no final de uma actividade me invade, ao pensar: hoje fiz algo por alguém!
Baralhando e dando de novo, alguns terão vontade, pelo que a seguir escrevo, de me espalmar um pau de marmeleiro no costado: não tenho a menor dúvida que já fiz mais por este Concelho, pela sua divulgação, pela sua economia e pelo seu enriquecimento cultural e social, do que a maioria dos que pelas costas e entre dentes, me chamam “importado”.
Vindo da gente de uma terra que tem na diáspora a grande maioria dos seus filhos, este epíteto é, no mínimo, estranho. Este surto xenófobo resulta, em minha opinião, do agravar de carência crónicas no Concelho, acentuadas pela actual crise. É fácil criticar o outro, o diferente, o estrangeiro, o que vem de fora, o “importado”. Em pleno século XXI, cada vez mais próximos do conceito de “aldeia global” de McLuhan, é este um sentimento profundamente provinciano e menor.
Remato com uma pequena história verídica: há alguns anos atrás, numa actividade a que nos deslocamos num outro Concelho, um dos elementos do nosso grupo comentou para alguém que éramos de Nisa. Ninguém o desmentiu, mas dos cinco aí presentes, um, eu próprio, sou natural de Lamego, três outros do Porto, da Guiné e de França (dois dos anteriores são de famílias da terra), e apenas o autor da tirada é natural de Nisa. Entre nós comentamos o facto entre sorrisos, sem discriminação, apenas constatando algo. Tal questão nunca entre nós se levantou, unidos que estivemos sempre, em torno de uma causa comum: o nosso Concelho!
Não enfio a carapuça, que me não serve, mas esta palavra, “importado”, assim dita, como quem cospe, é para mim um insulto que levo muito a peito. Hesitei bastante antes de escrever esta crónica, pela celeuma que irá certamente, em alguns meios, levantar, e pelas prováveis inimizades que me irá criar. Pela frontalidade que me caracteriza, não poderia deixar de ter este desabafo público, e assinar por baixo, como sempre faço.

1 comentário:

Nuno Cebola disse...

Pensei que já tivesses abandonado o teu blog mas vejo que regressaste em força! Nasci em Nisa e tenho muito orgulho nisso e mais ainda tenho de pessoas que não sendo naturais de cá, fazem mais pela terra do que muitos que cá nasceram e por cá andam há muito mais tempo que eu... Nisa precisa de muitos mais "importados" como tu ;)
Abraço!