
Antes do mais, um aviso à navegação: não sou filólogo mas apenas alguém que gosta da sua língua, de a falar e escrever correctamente, pelo que esta crónica não tem veleidades de teor científico, tecendo apenas considerações genéricas, umas do que creio ser comum bom senso, outras marcadamente pessoais.
Com particular incidência durante o último ano, que se prolongou pelo presente, rebentou a discussão entre aqueles que são a favor ou contra o Acordo Ortográfico, numa celeuma que, estou certo, continuará no futuro. Pelo menos até toda uma geração falar e escrever do mesmo modo, e apenas os mais velhos, em súbitos ataques saudosistas, precedidos do proverbial “no meu tempo”, resmungarem entre dentes que a língua já não é o que era.
Por mim, e para que as coisas fiquem desde já em pratos limpos, sou a favor deste Acordo. Para que melhor me entendam, direi que o Acordo em si não me aquece nem arrefece, a minha concordância deve-se a um sentido pragmático que entende que, se há coisas inevitáveis, uma delas é a evolução da língua, ao arrepio de todos os dicionários e acordos do mundo.
Nestes assuntos, os políticos andam sempre a reboque dos povos: limitam-se, em determinada altura, a regular aquilo que já é prática corrente. Se assim não fosse, talvez ainda andássemos todos a macarronear latim, ou pior ainda, a falar uma qualquer das línguas que os romanos encontraram ao chegar à Lusitânia.
Um dos pontos que maior celeuma levanta neste acordo tem a ver com o facto de a grafia das palavras ser “brasileira” e não “portuguesa”. Este acordo, tal como o entendo, pretende aproximar a fonética da morfologia, o modo como as palavras se pronunciam do modo como se escrevem, questão de importância maior, se queremos que o português continue a ser a primeira língua nos PALOP. Curiosamente, e talvez isto constitua surpresa para alguns, o português do Brasil é bastante mais conservador que o de Portugal, sobretudo no aspecto fonético. Um português de quinhentos seguramente entenderia melhor um carioca dos nossos dias do que um alfacinha.
Temos que nos colocar uma questão: uma língua é património de um determinado país ou dos seus falantes? A língua portuguesa é património de Portugal ou dos seus cerca de 200 milhões de falantes nativos, a que se somam mais cerca de 40 milhões não nativos?
Talvez por ter crescido em África, por ter vivido em várias regiões do nosso país, por manter contacto regular com falantes do Português de todos os cantos do mundo, nunca tive sentimento algum de posse sobre a língua. Mais: acredito piamente que o facto de se falar de um determinado modo em Angola, doutro no Brasil e doutro ainda em Portugal, contribui sobremaneira para o enriquecimento do português e para o seu futuro, do mesmo modo que o nosso substrato linguístico, o Latim, mas também o Visigótico ou o Árabe contribuíram para a riqueza da nossa língua.
Ainda no âmbito da língua, fui recentemente corrigido por alguém ao utilizar a palavra velho, sendo-me dito que isso já não se usava, deveria dizer idoso ou sénior. Isto deixou-me a pensar.
Pelos vistos, as palavras têm data de validade: passado determinado prazo devem seguir para o lixo ou a reciclagem. Claro que esta onda, chamemos-lhe assim, tem a ver com certos modismos, muito condicionados por alguns fazedores de opinião (e, ao ler isto, já está alguém a pensar que eu deveria dizer “opinion makers”) e acerca do que estas luminárias entendem ser politicamente correcto.
Se me permitem discordar, gosto da palavra velho. Velhinho não, que me lembra coisa pequenina e engelhada, mas velho, acho lindo. Muito mais do que o politicamente correcto "sénior" ou idoso, palavras sensaboronas, sem alma. Vocês imaginam Hemingway a escrever algo chamado "O Idoso e o mar", ou, pior ainda, "O Sénior e o Mar"? Se tiver essa fortuna, vou adorar que me chamem de "meu velho".
Estamos a transformar-nos num país de trampa, na inversa medida em que nos tornamos cada vez mais assépticos. Curiosa contradição esta, em que o perfumado sabonete do politicamente correcto se transmuta, por estranha e misteriosa alquimia, em fecais e malcheirosas atitudes, sempre precedidas de copiosa diarreia mental! O país, que se dizia de bravos, vai-se transformando numa massa acéfala e ovinamente obediente, porém muito polidinha e bem educadinha, que acha mal dizer preto, gordo, anão, deficiente, pobre, doido, velho, mulher-a-dias, contínuo, mentira (pérola de um dos deputados de cu que pululam no, cada vez menos, nosso parlamento, cujo nome não recordo, mas cuja tirada não esqueço, referindo-se às afirmações de um seu par: "- O que o Sr. acaba de dizer é uma inverdade!"), et coetera ad nauseum. Prefere-se a forma ao conteúdo, o supérfluo ao essencial, o artifício à realidade. Os bois chamam-se pelos nomes!
Uma pequena história: por razões que aqui não cabem, tive o privilégio de, em 2005, privar com um grupo de pessoas da ACAPO (Associação dos Cegos e Ambliopes de Portugal). Sem nunca ter discriminado, ainda que positivamente, pessoas com este tipo de deficiência (acho que também já não é assim que se diz) estava cheio de ideias preconcebidas de diversa ordem. Não querendo ferir susceptibilidades, dirigi-me a um dos membros do grupo, o Hortas, e disse uma frase qualquer onde inclui a palavra invisual. O Hortas deu uma grande gargalhada, virou-se para um companheiro, disse-lhe: “- Oh Zé Miguel! Arranjaram-me uma doença nova: já era cego, agora também sou invisual!”. Foi a última vez que fui politicamente correcto.
Com particular incidência durante o último ano, que se prolongou pelo presente, rebentou a discussão entre aqueles que são a favor ou contra o Acordo Ortográfico, numa celeuma que, estou certo, continuará no futuro. Pelo menos até toda uma geração falar e escrever do mesmo modo, e apenas os mais velhos, em súbitos ataques saudosistas, precedidos do proverbial “no meu tempo”, resmungarem entre dentes que a língua já não é o que era.
Por mim, e para que as coisas fiquem desde já em pratos limpos, sou a favor deste Acordo. Para que melhor me entendam, direi que o Acordo em si não me aquece nem arrefece, a minha concordância deve-se a um sentido pragmático que entende que, se há coisas inevitáveis, uma delas é a evolução da língua, ao arrepio de todos os dicionários e acordos do mundo.
Nestes assuntos, os políticos andam sempre a reboque dos povos: limitam-se, em determinada altura, a regular aquilo que já é prática corrente. Se assim não fosse, talvez ainda andássemos todos a macarronear latim, ou pior ainda, a falar uma qualquer das línguas que os romanos encontraram ao chegar à Lusitânia.
Um dos pontos que maior celeuma levanta neste acordo tem a ver com o facto de a grafia das palavras ser “brasileira” e não “portuguesa”. Este acordo, tal como o entendo, pretende aproximar a fonética da morfologia, o modo como as palavras se pronunciam do modo como se escrevem, questão de importância maior, se queremos que o português continue a ser a primeira língua nos PALOP. Curiosamente, e talvez isto constitua surpresa para alguns, o português do Brasil é bastante mais conservador que o de Portugal, sobretudo no aspecto fonético. Um português de quinhentos seguramente entenderia melhor um carioca dos nossos dias do que um alfacinha.
Temos que nos colocar uma questão: uma língua é património de um determinado país ou dos seus falantes? A língua portuguesa é património de Portugal ou dos seus cerca de 200 milhões de falantes nativos, a que se somam mais cerca de 40 milhões não nativos?
Talvez por ter crescido em África, por ter vivido em várias regiões do nosso país, por manter contacto regular com falantes do Português de todos os cantos do mundo, nunca tive sentimento algum de posse sobre a língua. Mais: acredito piamente que o facto de se falar de um determinado modo em Angola, doutro no Brasil e doutro ainda em Portugal, contribui sobremaneira para o enriquecimento do português e para o seu futuro, do mesmo modo que o nosso substrato linguístico, o Latim, mas também o Visigótico ou o Árabe contribuíram para a riqueza da nossa língua.
Ainda no âmbito da língua, fui recentemente corrigido por alguém ao utilizar a palavra velho, sendo-me dito que isso já não se usava, deveria dizer idoso ou sénior. Isto deixou-me a pensar.
Pelos vistos, as palavras têm data de validade: passado determinado prazo devem seguir para o lixo ou a reciclagem. Claro que esta onda, chamemos-lhe assim, tem a ver com certos modismos, muito condicionados por alguns fazedores de opinião (e, ao ler isto, já está alguém a pensar que eu deveria dizer “opinion makers”) e acerca do que estas luminárias entendem ser politicamente correcto.
Se me permitem discordar, gosto da palavra velho. Velhinho não, que me lembra coisa pequenina e engelhada, mas velho, acho lindo. Muito mais do que o politicamente correcto "sénior" ou idoso, palavras sensaboronas, sem alma. Vocês imaginam Hemingway a escrever algo chamado "O Idoso e o mar", ou, pior ainda, "O Sénior e o Mar"? Se tiver essa fortuna, vou adorar que me chamem de "meu velho".
Estamos a transformar-nos num país de trampa, na inversa medida em que nos tornamos cada vez mais assépticos. Curiosa contradição esta, em que o perfumado sabonete do politicamente correcto se transmuta, por estranha e misteriosa alquimia, em fecais e malcheirosas atitudes, sempre precedidas de copiosa diarreia mental! O país, que se dizia de bravos, vai-se transformando numa massa acéfala e ovinamente obediente, porém muito polidinha e bem educadinha, que acha mal dizer preto, gordo, anão, deficiente, pobre, doido, velho, mulher-a-dias, contínuo, mentira (pérola de um dos deputados de cu que pululam no, cada vez menos, nosso parlamento, cujo nome não recordo, mas cuja tirada não esqueço, referindo-se às afirmações de um seu par: "- O que o Sr. acaba de dizer é uma inverdade!"), et coetera ad nauseum. Prefere-se a forma ao conteúdo, o supérfluo ao essencial, o artifício à realidade. Os bois chamam-se pelos nomes!
Uma pequena história: por razões que aqui não cabem, tive o privilégio de, em 2005, privar com um grupo de pessoas da ACAPO (Associação dos Cegos e Ambliopes de Portugal). Sem nunca ter discriminado, ainda que positivamente, pessoas com este tipo de deficiência (acho que também já não é assim que se diz) estava cheio de ideias preconcebidas de diversa ordem. Não querendo ferir susceptibilidades, dirigi-me a um dos membros do grupo, o Hortas, e disse uma frase qualquer onde inclui a palavra invisual. O Hortas deu uma grande gargalhada, virou-se para um companheiro, disse-lhe: “- Oh Zé Miguel! Arranjaram-me uma doença nova: já era cego, agora também sou invisual!”. Foi a última vez que fui politicamente correcto.
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