domingo, 21 de outubro de 2012

O senhor Constantino




Uma mensagem hoje lida no Facebook, no grupo “Lamego Acontece”, a propósito da célebre Livraria Académica, trouxe-me à memória uma outra livraria da minha cidade natal, a Lúmen, e em particular um seu funcionário, o senhor Constantino.

Ao nome próprio e à função se resume todo o meu conhecimento do senhor Constantino. Nunca lhe conheci família ou morada, se era ou não natural de Lamego, a sua idade ou estado civil. Recordo-o de baixa estatura, rechonchudo e jovial, sempre atencioso, naquela deferência respeitosa que só no antigo comércio se encontrava. Hoje, passados todos estes anos, não tenho tenho sequer a certeza se era exactamente assim, mas é assim que o recordo. Apesar deste quase absoluto desconhecimento, e por estranho que pareça, o senhor Constantino foi das pessoas mais importantes da minha vida. Mais estranho parecerá se vos disser que só me dei conta disso muitos anos depois de ter deixado de frequentar a livraria, de ter saído de Lamego.

Sempre fui cliente assíduo. Para além do vulgar material escolar que aí adquiria, a minha paixão pelos livros levava-me visitá-la regularmente, em busca de novos títulos. Por essa altura adquiri o meu primeiro livro de bolso das Publicações Europa-América, do saudoso Lyon de Castro, a saber “Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos”, de Alves Redol. Leitura obrigatória, creio que no meu 7ª ano de escolaridade, descoberto pela mão de outro homem importante na minha vida, o meu querido Professor Aventino, que me abriu horizontes na literatura e me legou importantes ferramentas de trabalho para o futuro.

Lá pelo início dos anos 90, residindo em Lisboa, não deixava de me deslocar a Lamego com alguma frequência. Numa dessas visitas, ao entrar num café, reconheci o senhor Constantino. Ao cumprimentá-lo, depois de despachadas as costumeiras formalidades destas coisas de gente que se reencontra ao fim de algum tempo, aconteceu o seguinte diálogo:

“Então olha lá: ainda gostas de ler?”

“Claro que sim, senhor Constantino. Continuo a gostar muito.”

“Ainda bem! Olha, lembras-te de ir à livraria ver os livros da Europa-América? Aqueles que estavam ao fundo, num expositor redondo, que girava?”

Por esta altura comecei a sentir calores e, certamente, a corar.

“Lembro-me perfeitamente, não pensei foi que o senhor Constantino ainda se redordasse!”

“Então, e lembras-te de todas as semanas meteres um livro no bolso ou na mochila?”

Pronto, pensei, fui desmascarado, enquanto tentava gaguejar uma justificação.

“Oh senhor Constantino, o senhor desculpe, mas eu…”

“Não te preocupes! Nem fiques envergonhado. Nunca reparaste num espelho que existia junto ao tecto? Do balcão, por esse espelho, conseguia ver tudo o que fazias lá atrás. Da primeira vez fiquei chocado, sabes? Só não te dei logo um puxão de orelhas por respeito ao teu pai. Decidi deixar-te sair, falar com o teu pai quando o visse e logo se resolvia o assunto. O estranho foi o que fizeste na semana seguinte: entraste, cumprimentaste-me, foste para junto do expositor, tiraste um livro da mochila, arrumaste-o e tiraste outro! Fiquei sem saber o que fazer. Não te disse nada, deixei-te sair e fui logo ao expositor. Como sabia que livro tinhas levado, dei logo com ele: não se notava que tinha sido manuseado. Na semana a seguir a mesma coisa: entra um livro, sai outro. Fiquei sem saber o que fazer…”

“Senhor Constantino, desculpe, eu…”

“Já te disse que está tudo bem! Acabei por perceber que não estavas a roubar, estavas só a levar emprestado, e como não danificavas os livros acabei por achar piada ao miúdo que fazia da livraria, biblioteca! E também nunca disse nada ao teu pai. Aliás, nunca contei a ninguém. Só a ti, porque já és um homem e achei que nos íamos rir os dois um bocado. Mas por enquanto, parece que só eu é que me estou a rir!”

Ah, grande senhor Constantino! Ao perceber que um miúdo de 12 ou 13 anos, sem posses para comprar livros todas as semanas, numa cidade sem biblioteca, tinha uma paixão pela leitura que o levava a fazer algo atrevido e arriscado, entendeu e sorriu. E enquanto o senhor Constantino foi sorrindo, eu fui lendo, devorando livros, apaixonando-me ainda e cada vez mais pela literatura. Devem ter sido dezenas, centenas de livros, porque só parei com o estratagema lá pelo meus 17 anos. Sempre na convicção de nunca ter sido descoberto!

Gostei de me recordar hoje do senhor Constantino. Gostei de recordar como esse nome me une a um livro, a um autor, a um professor e a um empregado de livraria. E até eu, pouco dado a coisas esotéricas, fico a pensar se será tão só uma feliz coincidência…

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