Uma mensagem hoje lida no
Facebook, no grupo “Lamego Acontece”, a propósito da célebre Livraria
Académica, trouxe-me à memória uma outra livraria da minha cidade natal, a
Lúmen, e em particular um seu funcionário, o senhor Constantino.
Ao nome próprio e à função se resume
todo o meu conhecimento do senhor Constantino. Nunca lhe conheci família ou
morada, se era ou não natural de Lamego, a sua idade ou estado civil. Recordo-o
de baixa estatura, rechonchudo e jovial, sempre atencioso, naquela deferência
respeitosa que só no antigo comércio se encontrava. Hoje, passados todos estes
anos, não tenho tenho sequer a certeza se era exactamente assim, mas é assim que
o recordo. Apesar deste quase absoluto desconhecimento, e por estranho que
pareça, o senhor Constantino foi das pessoas mais importantes da minha vida. Mais
estranho parecerá se vos disser que só me dei conta disso muitos anos depois de
ter deixado de frequentar a livraria, de ter saído de Lamego.
Sempre fui cliente assíduo.
Para além do vulgar material escolar que aí adquiria, a minha paixão pelos
livros levava-me visitá-la regularmente, em busca de novos títulos. Por essa altura
adquiri o meu primeiro livro de bolso das Publicações Europa-América, do saudoso
Lyon de Castro, a saber “Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos”, de Alves
Redol. Leitura obrigatória, creio que no meu 7ª ano de escolaridade, descoberto
pela mão de outro homem importante na minha vida, o meu querido Professor
Aventino, que me abriu horizontes na literatura e me legou importantes
ferramentas de trabalho para o futuro.
Lá pelo início dos anos 90, residindo
em Lisboa, não deixava de me deslocar a Lamego com alguma frequência. Numa
dessas visitas, ao entrar num café, reconheci o senhor Constantino. Ao cumprimentá-lo,
depois de despachadas as costumeiras formalidades destas coisas de gente que se
reencontra ao fim de algum tempo, aconteceu o seguinte diálogo:
“Então olha lá: ainda gostas
de ler?”
“Claro que sim, senhor Constantino.
Continuo a gostar muito.”
“Ainda bem! Olha,
lembras-te de ir à livraria ver os livros da Europa-América? Aqueles que
estavam ao fundo, num expositor redondo, que girava?”
Por esta altura comecei a sentir
calores e, certamente, a corar.
“Lembro-me perfeitamente,
não pensei foi que o senhor Constantino ainda se redordasse!”
“Então, e lembras-te de
todas as semanas meteres um livro no bolso ou na mochila?”
Pronto, pensei, fui
desmascarado, enquanto tentava gaguejar uma justificação.
“Oh senhor Constantino, o senhor
desculpe, mas eu…”
“Não te preocupes! Nem
fiques envergonhado. Nunca reparaste num espelho que existia junto ao tecto? Do
balcão, por esse espelho, conseguia ver tudo o que fazias lá atrás. Da primeira
vez fiquei chocado, sabes? Só não te dei logo um puxão de orelhas por respeito
ao teu pai. Decidi deixar-te sair, falar com o teu pai quando o visse e logo se
resolvia o assunto. O estranho foi o que fizeste na semana seguinte: entraste,
cumprimentaste-me, foste para junto do expositor, tiraste um livro da mochila,
arrumaste-o e tiraste outro! Fiquei sem saber o que fazer. Não te disse nada,
deixei-te sair e fui logo ao expositor. Como sabia que livro tinhas levado, dei
logo com ele: não se notava que tinha sido manuseado. Na semana a seguir a
mesma coisa: entra um livro, sai outro. Fiquei sem saber o que fazer…”
“Senhor Constantino,
desculpe, eu…”
“Já te disse que está tudo
bem! Acabei por perceber que não estavas a roubar, estavas só a levar
emprestado, e como não danificavas os livros acabei por achar piada ao miúdo
que fazia da livraria, biblioteca! E também nunca disse nada ao teu pai. Aliás,
nunca contei a ninguém. Só a ti, porque já és um homem e achei que nos íamos rir
os dois um bocado. Mas por enquanto, parece que só eu é que me estou a rir!”
Ah, grande senhor
Constantino! Ao perceber que um miúdo de 12 ou 13 anos, sem posses para comprar
livros todas as semanas, numa cidade sem biblioteca, tinha uma paixão pela
leitura que o levava a fazer algo atrevido e arriscado, entendeu e sorriu. E
enquanto o senhor Constantino foi sorrindo, eu fui lendo, devorando livros,
apaixonando-me ainda e cada vez mais pela literatura. Devem ter sido dezenas,
centenas de livros, porque só parei com o estratagema lá pelo meus 17 anos. Sempre
na convicção de nunca ter sido descoberto!
Gostei de me recordar hoje
do senhor Constantino. Gostei de recordar como esse nome me une a um livro, a
um autor, a um professor e a um empregado de livraria. E até eu, pouco dado a
coisas esotéricas, fico a pensar se será tão só uma feliz coincidência…
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