quarta-feira, 28 de julho de 2010

Solidário ou solitário?


Aos 16 anos, com uma mão-cheia de outros sonhadores, fui sócio-fundador de uma Associação Cultural, Desportiva e Recreativa. Foram tempos épicos, de noitadas e fins-de-semana de trabalho, de negociações com dirigentes autárquicos, com o FAOJ (hoje IPJ), de divulgação junto da população local. Um ano após a sua fundação, a Associação tinha constituído um Grupo de Teatro, um Rancho Folclórico, uma equipa de futebol a competir no campeonato do INATEL, pela primeira vez se proporcionou a jovens a participação num acampamento e o contacto com desportos como a canoagem, pela primeira vez os mais velhos tiveram a oportunidade de ver cinema (projectado na parede caiada da igreja paroquial, com cada um a trazer a sua cadeira de casa), para além de termos criado um jornal mensal.

Volvidos poucos anos, todo esse trabalho tinha caído por terra, restando a equipa de futebol. Questionei a Direcção de então acerca do sucedido. A resposta foi que não havia voluntários em quantidade suficiente, que mal tinham conseguido arranjar elementos suficientes para formar a Direcção, quanto mais gente para trabalhar nas secções. Como não me reconhecia já na Associação, desvirtuada de tudo aquilo que me tinha levado a lutar por ela, solicitei a minha desvinculação da mesma. Desde então, colaborei com uma Associação de Bombeiros Voluntários, fui dirigente de uma Associação de Moradores (também como sócio-fundador) e de uma Associação de Juventude, para além de ser sócio em algumas outras.

Enquanto antigo dirigente, tive oportunidade de falar com outros dirigentes que me manifestaram as dificuldades que encontram na sua actividade associativa. Dessas dificuldades há uma que sobressai - a dificuldade em arranjar pessoas disponíveis para fazer parte dos Órgãos Sociais, particularmente das Direcções.

Pela minha parte, o que sinto é a necessidade de reflectirmos sobre esta situação e tomarmos medidas. A esmagadora maioria dos Dirigentes Associativos é voluntária, trabalhadores por conta de outrem. As relações laborais em Portugal têm vindo a ser sucessivamente alteradas em prejuízo dos trabalhadores, ao ponto de um Dirigente não poder garantir, com certeza, a sua disponibilidade mental e temporal para o exercício da actividade associativa. A precariedade, a deslocalização, a flexibilização dos horários, contribuem para destruir toda a teia de relações sociais, ao ponto de desestruturar as famílias, os grupos de amizade, as relações sociais de proximidade e de pertença.

A lei 20/2004 - Estatuto do Dirigente Associativo Voluntário, que no art.º 2º menciona que a mesma “estabelece o regime de apoio aos dirigentes associativos voluntários na prossecução das suas actividades de carácter associativo”, concedendo aos mesmos a possibilidade de tratar de assuntos da sua Colectividade no período normal de trabalho (crédito de horas), quando é evocada, ou é interpretada da forma menos favorável aos trabalhadores ou lá vêm as ameaças veladas e em tom intimidatório "ou trabalhas aqui, ou és dirigente associativo...tens que escolher". Claro que perante estas situações, muitos dirigentes nem chegam a usar o direito que a lei consagra.

As associações actuam no vácuo produzido pela insuficiência dos apoios familiares e institucionais, e do claro propósito dos governos e autarquias de deixar sob responsabilidade da iniciativa privada a resolução de alguns dos problemas que essa insuficiência origina.

Vivemos um momento de crise, de crise económica mas também de crise de valores, fruto de uma sociedade materialista, em que poucos se dispõem a abdicar do seu tempo em prol dos outros, de forma gratuita e desinteressada. Começa a ser um verdadeiro milagre encontra pessoas que, ao longo de muitos anos, por vezes uma vida inteira, dedicaram os seus tempos livres a uma causa social, com sacrifício do seu descanso, dos tempos de convívio familiar e por vezes até com prejuízo da sua vida profissional.

Parte do problema é também responsabilidade das associações, com grande parte destas imersas no activismo. A realização das actividades da associação e a sua sustentação ocupam quase todo tempo, não havendo disponibilidade para rever o que se faz e como se vai avançando para alcançar os objectivos. Falta reflexão interna, analise, autodiagnóstico e autocrítica colectiva. Para além disso, carecem de uma estratégia global. Grande parte das iniciativas são pontuais, paliativas, descontinuas… não há projectos globais, nem no que diz respeito à estratégia de abordar os problemas e necessidades sociais com que trabalham, nem no que diz respeito aos seus próprios modelos organizativos.

É cada vez mais difícil motivar os jovens, que preferem ocupar de diferentes formas o seu tempo livre, para o associativismo e voluntariado. É difícil convencê-los a abdicar de parte desse tempo em prol de alguém que muitas vezes não se conhece mas que necessita de apoio, de amparo, de um pouco de companhia, uma palavra amiga, ou tão só ocupar, de modo estimulante, os seus tempos livres.

Ao longo de milénios o Homem uniu esforços, congregando o seu saber e a sua acção em torno de objectivos comuns, graças ao espírito de solidariedade, raiz do movimento associativo e do voluntariado. Perante a crise que estes movimentos atravessam, a questão que hoje se coloca é esta: continua o Homem um ser solidário, ou está em vias de se transformar num ser solitário?
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imagem daqui: http://www.werlife.com/

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