terça-feira, 20 de julho de 2010

Bufarinheiros


Imaginem um agregado familiar de 4 pessoas: casal e dois filhos em idade escolar. A mulher ficou recentemente sem trabalho, por encerramento da fábrica onde laborava, e o marido ganha cerca de 900 euros por mês. Contrairam um crédito à habitação e outro ao consumo, para aquisição de uma viatura, que estão a pagar, e lhes subtrai cerca de 2/3 do rendimento mensal. A isto acrescem despesas com a educação dos filhos e as despesas correntes de casa. No fim do mês pouco ou nenhum dinheiro sobra, quando sobra. Temos o caldo entornado.

Esta família tem que chegar a um consenso, reunindo em conselho familiar, ponderando as opiniões de todos, filhos incluidos, para rapidamente encontrar modo de fazer face à crise: urge fazer opções de estilo de vida, tomar decisões, de modo a reduzir a despesa ou aumentar o rendimento. Como o aumento de rendimento não se afigura possível a curto/médio prazo, a solução passa pela redução da despesa: a família precisa de decidir se vai ou não de férias, se mantém as saídas ao fim-de-semana, se mantém as actividades de tempos livres dos filhos, se prescinde da televisão por cabo, se vai renovar o guarda-roupa, se vai utilizar menos a viatura, como pode reduzir as facturas da água e electricidade, enfim, um sem número de escolhas.

Continuemos a imaginar. Em vez de fazer o que acima descrevi, esta família começa a discutir todos os dias, trocando acusações, levando ao limite a expressão "casa onde não há pão, todos ralham, ninguém tem razão." Mais: a família começa a discutir quem é que afinal manda lá em casa e quais são os limites desse poder. As decisões que a poderiam salvar vão ficando para as calendas gregas e a crise acentua-se.

Agora imaginem um país em crise e alguns dos seus orgãos de soberania, aqueles que têm nas mãos a responsabilidade de conduzir o país a bom porto, função para que foram eleitos: Presidência da República, Parlamento e Governo. Resolver a crise? Cortar na despesa pública? Não. Vamos antes apertar o cinto da classe média e discutir a revisão da Constituição. Não vou entrar pelos chavões da "perda das conquistas de Abril" e dos "direitos inalienáveis dos trabalhadores". 

Querer, com uma campanha presidencial a decorrer, alterar as competências do Presidente da República, não lembra ao diabo. Querer ainda alterar o actual sistema político, que funciona porque existe um equílibrio de poderes tripartido, atribuindo mais peso político a qualquer um dos três orgãos, com consequências de difícil previsão, mas desde logo diminuindo o papel dos cidadãos na regência do país, é mexer num ninho de vespas.

Pior ainda: em plena crise económica e financeira, com gravíssimas repercursões sociais, querer reduzir, quando não abolir,  direitos consagrados na Cosntituição nas áreas do trabalho, educação e saúde, é injusto e imoral. Discordo de alguns dos artigos da legislação laboral vigente, que em muitos casos permite e favorece os baixos índices da produtividade que temos, prejudicando gravemente a sustentabilidade das empresas e a economia nacional. Mas a sua alteração, no actual cenário sócio-economico, terá como consequência  que muitos empresários sem escrupúlos retirem ainda mais direitos aos trabalhadores, agravando a precaridade do emprego e a redução dos salários.  Apesar de todos sabermos que os artigos da Constituição que preconizam a criação um sistema de ensino gratuito e de um sistema de saúde tendencialmente gratuito são, há muito, letra morta (perguntem a qualquer pai que paga a educação dos filhos ou a qualquer cidadão que necessite de cuidados de saúde), mandam a decência e a vergonha que não se prejudique ainda mais quem já está a suportar, quase exclusivamente, os custos da crise.

Mais uma vez a jogatana política ganha terreno à seriedade política, porque ninguém me tira da cabeça que o PSD avança com esta proposta apenas com o fito de a utilizar como "moeda de troca", aquando da apresentação pelo Governo do  próximo Orçamento de Estado. Para chegar ao Orçamento que pretende, e sabendo que o mesmo não poderá se aprovado sem a sua concordância, o PSD apresenta propostas de alteração de artigos da Constituição que sabe serão liminarmente recusados pelo PS. Se o Governo quiser ver aprovado o próximo Orçamento, terá o PS que fazer cedências na aprovação da revisão Constitucional. Aprovar-se-á o Orçamento de Estado com o PS a ceder em alguns pontos, porque o PSD vai ceder em outros na Revisão Constitucional.

Um negócio ao género do feito pelos magrebinos que por vezes encontro na rua e me pedem 50 euros por algo que eu sei, e eles também,  não vale 1/3 disso, e acabará, após o regateio da praxe, por ser vendido por 10 euros. Em vez de políticos, temos bufarinheiros
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imagem: "A Política: a Grande Porca", caricatura da Rafael Bordalo Pinheiro

1 comentário:

th disse...

Jogam com as nossas vidas sem o mínimo dos escrúpulos e vivem à custa dos nossos sacrifícios...
brincam aos jogos de poder sem qualquer prurido...e refiro-me a TODOS!