sábado, 17 de julho de 2010

Menina não entra


Quem me faz o favor de ir tendo paciência para me ler, já saberá por esta altura, que sou agnóstico empírico. Quer isto dizer que admitindo a possibilidade teórica da existência de um ou mais deuses, aguardo que alguém me prove essa existência. Diz-me gente de várias religiões com quem vou trocando impressões que elas, as provas, estão por toda a parte. Estarão, mas são provas que carecem de um pressuposto para ser aceites: a existência de fé. E aqui é que a porca torce o rabo: como posso eu, que não sou crente, ter fé? E não a tendo, como irei aceitar tais provas? Este círculo vicioso só será quebrado se e quando me apontarem uma prova empírica, o que duvido venha acontecer.

Tendo esta posição filosófica, e sendo, por natureza, tolerante, todas as religiões me merecem o mesmo respeito. Aprecio até uma boa discussão teológica, que normalmente termina no tal muro que me separa dos crentes: a fé. Serviu todo este arrazoado para dizer que, porque não me acho com esse direito,  não me meto em terrenos que são do domínio da fé e dos seus dogmas, reservando-me o direito de opinar sobre assuntos profanos, ainda que dimanados da hierarquia de alguma religião. Ou seja, longe de mim questionar que Maomé é o último profeta de Deus, que o Dalai Lama é a reencarnação de Buda, que o tempo do Messias dos Judeus ainda não chegou ou que Jesus é filho de uma virgem.

Foram recentemente dadas à estampa notícias referentes a um documento divulgado pelo Vaticano que actualiza a Lei Canónica, intitulado "Normas sobre os crimes mais graves". Nesta actualização, a primeira desde 2001, têm particular relevo as alterações relacionadas com os delitos cometidos contra a moral (relativa a sacerdotes e laicos) ou na celebração dos sacramentos (exclusiva dos sacerdotes). De um vasto rol de crimes canónicos, como a heresia e o cisma, aos crimes que caem na alçada dos códigos penais, como a pedofilia e o abuso sexual de pessoas psiquicamente incapacitadas, esta nova Lei Canónica reforça posições já assumidas por João Paulo II (Carta Apostólica "Ordinatio Sacerdotalis", 1994) relativamente à ordenação de mulheres.

Sobre o estabelecimento de regras mais severas para combater os abusos sexuais, uma medida que visa suster escândalos sucessivos que, um pouco por todo o mundo, vêem assolando a Igreja Católica (e já aqui referi, em postagem anterior, que não tomo a nuvem por Juno),  é minha opinião que andou bem o Vaticano, assumindo uma posição que tardava, embora o documento não seja explícito quanto à obrigatoriedade de denúncia de tais crimes às autoridades civis.

Quanto à questão da ordenação de mulheres, também considerado um dos crimes mais graves, punindo com a excomunhão tanto a mulher que tentar ser ordenada como o bispo que o fizer, é minha opinião que se trata de uma gritante atitude discriminatória. A Congregação da Doutrina da Fé do Vaticano, consultada em 1995 sobre esta questão, respondeu que a discussão desse assunto deve ser encerrada na Igreja, e que os católicos e católicas devem aceitar na “obediência da fé” esse ponto de doutrina que o Papa e o magistério da Igreja definiram como verdade de fé. Ou seja, é entendimento desta Congregação que esta decisão tem carácter definitivo e irrevogável .

O suporte teológico desta posição tem a ver com o facto de, segundo a Sagrada Escritura e a Tradição da Igreja, em relação ao sacramento da Ordem, nem Jesus Cristo nem algum sucessor do Apóstolo Pedro terem alguma vez conferido a ordenação sacerdotal a mulheres, tanto entre os cristãos ocidentais como entre os orientais. Baseia-se ainda no procedimento do próprio Cristo, que não chamou mulheres para a Última Ceia (na qual instituiu e conferiu o sacramento da Ordem). Segundo João Paulo II,  a Igreja não tem autorização para mudar este ponto: “Para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição da Igreja divina, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos, declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja”.

Discordo que seja esta uma questão de fé, muito menos uma questão de ordem moral, mas tão somente de uma tradição, uma prática há muito estabelecida, com a Igreja-instituição (para mim diferente da Igreja-conjunto dos crentes) a adoptar o sistema patriarcal que encontrou vigente no mundo judaíco-greco-romano, de difícil defesa teológica, existindo na Sagrada Escritura argumentos que permitem defender uma e outra posição.

Em 1997 foi divulgado um estudo sobre «Os Leigos e a Reforma na Igreja» realizado entre católicos na Alemanha, Espanha, Irlanda, EUA, Itália, Polónia e Filipinas. A pergunta «Estaria a favor ou contra que o próximo Papa autorizasse a ordenação sacerdotal das mulheres?», colheu as seguintes percentagens de respostas favoráveis: na Alemanha (71%), Espanha (71%), Irlanda (67%), EUA (65%), Itália (58%), Polónia (24%) e Filipinas (18%). A mesma questão foi colocada a uma amostra representativa de católicos em Portugal, em 1998, tendo 71% respondido favoravelmente.

A Igreja-conjunto dos crentes pronunciou-se, mas a Igreja-instituição mantém a irredutibilidade de uma posição misógina e com falta de sentido evangélico, esquecendo  que as mulheres abriram novos espaços de afirmação e de identidade, prestando, em termos quantitativos e qualitativos, uma imensidão de serviços ao próximo, em todas as zonas do mundo, serviço esse que se mantém em grande medida invisível.

Dito isto, resta-me acrescentar que ser Católico Apostólico Romano (Católico porque a Igreja é universal, Apostólico porque deve difundir o Evangelho, Romano porque aceita o primado do Bispo de Roma) implica aceitar, na íntegra e sem questionar, todas as normas e dogmas estabelecidas pelo Vaticano. Confundem-me aqueles Católicos que se dizem não-praticantes, que é coisa que não concebo, ou aqueles que não aceitam a infalibilidade do Papa em questões de fé. Não se pode estar com um pé dentro e outro fora. Eu posso questionar, como acabo de fazer, decisões do Papa. Um Católico não. Se discorda de algo tem apenas duas soluções: ou adere a outra Igreja, em que veja reflectidas suas convicções pessoais, ou realiza a sua ligação com o divino a título pessoal, sem se vincular a religião alguma.

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imagem daqui: http://www.limacoelho.jor.br

4 comentários:

Anónimo disse...

Gostei muito deste artigo de opinião. Bem argumentado. Adorei a associação à Luluzinha e à misoginia do grupo do Bolinha. Quanto às decisões da Igreja, fazem-me simultaneamente enraivecer e rir a bandeiras despregadas. Como diziam os africanos "eles que são brancos que se entendam", né?
Uma, também sem evidências... Beijinho
Clara

ana disse...

há muitos anos atrás eu também me considerava católica não praticante pois ia á igreja mas fora da hora da missa.agora vou á missa pois fui uma vez e foi o padre Nuno e adorei a missa ,mas muitas vezes não concordo com o que se diz mas isso é outra questão,agora o Papa comparar a pedófilia dos padres com o ordenamento de mulheres padres isso já é demais não?

José Monteiro disse...

Cara Ana,
Não me parece que o Vaticano tenha estabelecido esse paralelo, antes se trata de dois "crimes" com, digamos assim, a mesma "moldura" penal. O que me incomoda é que se considere a ordenação de mulheres um crime, como se estas fossem seres inferiores, quase uma sub-espécie humana.
Um abraços,
José Carlos

ana disse...

para o vaticano é uma balança com dois braços iguais,é justo terem o mesmo peso? com a falta de vocação que há hoje em dia qualquer dia fecham-se as portas.E DEPOIS COMO É?