segunda-feira, 26 de abril de 2010

25 de quê??


Ontem, como faço há largos anos, assisti pela televisão às comemorações oficiais do 25 de Abril na Assembleia da República. Não pude assistir a toda a sessão, dado que me desloquei ao Cineteatro de Nisa para aí participar nas comemorações do Concelho. Em ambas ficou-me na boca um gosto ácido, um sentimento que não sei muito bem descrever, mas que estará entre a frustração e o desalento. Numa e noutra, vi na cara dos políticos a mesma expressão de desinteresse e fastio, o aborrecimento por, neste feriado ao contrário de outros, não poderem ficar na cama até mais tarde, pela obrigação de estarem presentes nas cerimónias e dirigirem algumas palavras ao povo.

E que palavras ouvi? Mais do mesmo, os lugares comuns do costume, os mesmos chavões, banalidades sem chama nem sentimento. Pior: ouvi gente que aproveitou para dirigir as alfinetadas do costume aos seus opositores, ou tecer loas em proveito próprio, palavras que têm certamente o seu lugar em outros fóruns e outros momentos, esquecendo em absoluto o momento que se pretendia celebrar.

"Falta cumprir Abril": foi talvez esta a frase que ontem mais ouvi repetida. E uma vez mais me convenço que a nossa classe política, mais preocupada com o seu umbigo do que com a realidade que a rodeia, ainda não se deu conta, ou finge não dar, daquilo que o resto de nós já sabe: o espírito do 25 de Abril está morto e enterrado! Não falta cumprir nada, porque o tempo de se cumprir fosse o que fosse, há muito passou! Foi um momento no tempo e no espaço, irrepetível, definitivamente perdido, desperdiçado.

Tenho 46 anos. Em 25 de Abril de 1974 tinha nove anos, o que significa que não fui perseguido pela PIDE/DGS, não levei bastonadas nem fui torturado, não fui preso sem acusação formada, não fui deportado nem tive que me exilar para não ir bater com os costados na Guerra Colonial. Filho de funcionário público, não senti fome nem frio, não tive que começar a trabalhar aos 8 ou 10 anos, pude ir à escola.

Então, perguntar-se-ão, porque raio me preocupo eu tanto com o 25 de Abril, porquê esta inquietude, esta desilusão? Não, não sou de esquerda desde pequenino (muito menos dessa esquerda que continua a querer ter o monopólio do direito à indignação, ao sonho, como se a Revolução fosse propriedade sua), nem "engoli a cassete". Não, não sou daqueles que em 26 de Abril, depois de décadas de bovina inércia, descobriram de repente que eram democratas e anti-qualquer-coisa. Não, também não sou daqueles que, porque é politicamente correcto, põem um cravo ao peito uma vez por ano e cantam, sem se lembrarem muito bem da letra, a "Grândola, Vila Morena".

Preocupo-me porque me incomoda que as gerações posteriores à minha não sabem que neste país houve 48 anos de Ditadura.

Preocupo-me porque cada vez ouço mais gente, fruto da desilusão e, muitas vezes, do desespero, a clamar pelo surgimento de um novo Salazar.

Preocupo-me porque as lições da História não servem aparentemente de nada, e me parece que já ninguém sabe que circunstâncias na 1ª República propiciaram o triunfo da Ditadura. Desemprego, inflação, descalabro das contas públicas, falências em catadupa, bancarrota, agitação social, parece-vos isto familiar?

Preocupo-me porque me sinto responsável pelo testemunho que a geração que me antecedeu me transmitiu, pela voz de meus avós, gente "chã e rude", para citar Fernão Lopes, que de política nada sabia ou queria saber, mas me contou histórias de fome e miséria, pela voz de homens como Sérgio Vilarigues, que conheceu o Forte de Peniche e o Tarrafal, que andou na clandestinidade, com a morte sempre à espreita, pela voz de familiares que viveram o horror da guerra em África e de lá voltaram estropiados, física e psicologicamente.

Porque honro a memória daqueles que perderam a vida na defesa dos seus ideais, pelos que viveram amordaçados, pelos que, ao contrário de mim, passaram fome e frio e não foram à escola, porque não quero que isso alguma vez volte a acontecer, por tudo isso me preocupo.

Reafirmo: o espírito do 25 de Abril está morto e enterrado. Mas que a sua memória seja desvirtuada, que a Ditadura seja branqueada e esquecida, isso, meus amigos, não permitirei nunca!
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imagem daqui: http://fotos.sapo.pt/h2JIPvdBEIYNvtlq3khF?a=2
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PS: num momento em que supostamente se celebra a Igualdade, acho curioso que os oradores que nos brindaram com a sua palavra, continuem a ser apresentados como Sra. Doutora, Sr. Engenheiro ou Sr. Professor, e lembro-me da Revolução Francesa, em que honrar alguém era chamar-lhe Cidadão.

2 comentários:

th disse...

Como sempre me encanto com o saber das tuas palavras, elas dizem o que eu não soube transmitir quando defendi a revolta dos capitães.
Como disse noutro sítio, para mim o 25 de Abril cumpriu-se no 1º de Maio de 74.
(Deixas-me colocar no NetMares este teu post?)
Beijo, theo

Anónimo disse...

E porque e verdade eu subscrevo
E porque e sincero eu subscrevo
E porque me identifico eu subscrevo
E porque resgata a memoria da dignidade eu subscrevo
E porque mostra que o mundo ainda tem cerebros com conteudo eu subscrevo
E porque nao o conheco mas esta tao certo eu subscrevo
E subscrevo porque me tirou esta avassaladora sensacao de estar so no mundo.