Fechei a mala e fiz-me ao caminho. Rumo ao norte, ao verdejante e farto norte do final da minha infância, onde a água serpenteava em frescos murmúrios pelas encostas até engrossar ribeiras onde no verão procurava refrigério do sol. Por estes dias o negro e o cinza uniformizam a paisagem e até a água escasseia, num lamento de velhas de negro que juram por todos os santos que nunca viram as fontes deitar tão pouco.
Dirigi-me a Penude, uma freguesia nas proximidades de Lamego, terra dos meus antepassados e onde residem meus pais, a pretexto das Festas de Nª Senhora do Rosário do Outeiro de Penude, a 15 de Agosto. É a época do ano em que revejo os que resistem por lá e os amigos que como eu se fizeram à vida e estão pela capital e por essa Europa fora, e familiares que, a menos que haja casamento, baptizado ou funeral (lagarto, lagarto, lagarto...!), só cumprimento em épocas festivas.
A23, IP5, A24, siglas da nossa modernidade, que por ora significam caminhos rápidos e sem portagens, enfim, rápidos é força de expressão, em alguns deles as constantes obras levaram-me a circular a uma velocidade média de 60 km/h.
Por um lado agrada-me chegar ao meu destino num terço do tempo que costumava levar há 30 anos, por outro lado, e todas as coisas têm um outro lado, sinto uma certa nostalgia pela lentidão das viagens desse tempo, de passar por terras que agora antevejo mais ou menos ao longe, dos restaurantes de beira de estrada (que saudades de parar na Mealhada!), dos farnéis cuidadosamente preparados de véspera e saboreados em aprazíveis recantos com sombra e fonte e que existiam, cuidados por homens como o meu avô materno, Ti Zé Cantoneiro, de poucos em poucos quilómetros. Coisas que conto ao meu filho e que ele não entende, porque só conhece quilómetros atrás de quilómetros de alcatrão negro em via dupla ou tripla e estações de serviço.
Foi nesse lento e por vezes desesperante viajar que tive o primeiro contacto com locais que nunca mais visitei: Vila Franca de Xira, Alcobaça, Caldas da Rainha, Batalha, Leiria, Coimbra, Tondela, Viseu, quando me deslocava pela EN1 ou Ponte de Sôr, Castelo Branco, Covilhã e Guarda, quando a viagem era mais pelo interior.
Aproveitei estes dias para por em prática um plano antigo, aprofundar a pesquisa da árvore genealógica da família, que já vai em antepassados do início do séc. XIX, com algumas surpresas pelo meio, nomeadamente uns até agora desconhecidos "pais incógnitos" e até meios tios-avós de quem confirmei a existência, alguns deles ainda vivos.
Do pretexto da viagem pouco há a dizer: apenas que o número de pessoas que participam nos festejos, nomeadamente os mais jovens, é cada vez menor, a parte religiosa a ser a mais afectada, que os bailaricos sempre vão sendo concorridos. Outra coisa também mudou, esta para melhor: os arraiais de pancadaria que noutros tempos eram da praxe, aliás festa em que não houvesse porrada, resultante de bebedeira mal digerida, ciúmeira exacerbada ou rivalidade entre aldeias, não era festa nem era nada!
Dois irmãos do meu bisavô materno eram aliás conhecidos por bizarrias deste tipo: já com um grãozito na asa, olhavam um para o outro e lá vinha o comentário: "-Então não estreamos o buxo?" E um qualquer desgraçado era escolhido como vítima, de preferência um com cara para levar dois estalos e varapau na mão, desafiado por motivos fúteis, um encontrão simulado, um olhar de soslaio, e começava a luta. Depois, estreado o buxo, mais dois copinhos de três e ala para casa deitar vinagre nos vergões da bordoada!
.Glossário: buxo, cajado feito com a madeira muito densa e dura da planta do mesmo nome, da família das buxáceas.
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fotos: josé carlos
4 comentários:
é pá, não vou lá a cima não, antes que estreiem o buxo nos meus fracos costados :-)
Bom texto, como sempre; esse vaguear pelas letras em estradas contado... gostei mesmo.
Abração
Calculei que estivesses de férias, por isso não desisti de vir cá diáriamente, que não queria perder o teu regresso. Essa saudade tb foi a minha em viagem recente, como deves estar lembrado, só não tive foi arte para a descrever como tu sabes. Abraço meu, amigo, th
Vamos lá abrir essa mala outra vez.
beijinhos! É bom teres regressado!
Ena ena! Também tenho família em Penude! Apesar dos meus pais terem "emigrado" p/ Lisboa aos 18 anos, fui religiosamente até aos 24 anos passar lá as férias e alguns Natais. Foi lá que me estreei nos bailaricos também (as Festas do S.Pedro), as primeiras danças a pares (cá em Lisboa nao se fazia nada disso) :) Primo...talvez?
Claudia
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