quarta-feira, 20 de julho de 2005

Para que se não esqueça! - Parte II

Meia-volta, volver, ordinário-marche, sobe-se o portaló do navio, niassa, vera-cruz ou outro qualquer, tanto faz, já se vai enchendo o bojo do monstro que vomita rolos de fumo cada vez mais grossos e negros, anunciando a partida. Nos conveses amontoam-se os corpos, luta-se por chegar à amurada, para se chegar a um último adeus aos que ficam.
No cais não se reconhece ninguém, só lenços brancos acenando, choros e gritos e ranger de dentes, e a banda que continua a tocar, e os capacetes brancos da polícia militar, ou serão mais lenços. Chegam a bordo as senhoras do movimento nacional feminino distribuindo cigarros e bentas imagens e aerogramas e apertos de mão, cheirosas senhoras bem, filhas de famílias bem, esposas fidelíssimas de senhores bem e mães extremosas de meninos bem a estudar em londres ou com adiamento de incorporação a beber bicas no nicola e a ler sartre. Piedosas senhoras bem comprando bilhetes de lotaria da taluda do reino do céu, anda à roda no dia do juízo final, E tu que fizeste minha filha, Distribui cigarros e bentas imagens e aerogramas e apertos de mão, senhor.
Larga amarras o navio afastando-se lenta e inexoravelmente de terra, adeus cais de alcântara, adeus ponte salazar, adeus farol do bugio, adeus, adeus, até ao meu regresso. Roncam mais forte as entranhas da nave, mais negro e expesso o fume que expele, entrando mar adentro, o mar salgado das lágrimas de mãe que o poeta cantou.

.

continua...

foto: Centro de Documentação 25 de Abril - Universidade de Coimbra

2 comentários:

Dinamene disse...

Só quero agradecer, não para que não se esqueça, mas para que se lembre, que é preciso lembrar muito e muitas vezes.
E gostei de lembrar e lembrar da maneira como o faz.
E à Chuinga, IO, o devo.
Obrigado aos dois.

Luisa Hingá disse...

Que nunca se esqueça que foi derramado muito sangue em vão...Assassinos...