segunda-feira, 10 de março de 2014

Catarse

 
 
Para os muitos que ainda se questionam e têm sérias e inflamadas dúvidas sobre a importância da construção de uma ponte; para os que vivem longe do que é viver ...encostado à linha de um país, que se esquece também ele, de que aqui também existem pessoas com vontade, de verdade, fica o retrato, não o bonito mas o possível. À minha maneira.

Era ainda ontem e já parecia depois de amanhã. As ruas frágeis de agora onde tudo se parte, donde se parte, donde todos partem eram ruas cheias de pessoas, inflamadas de vida, de certezas sobrenaturais e não de dúvidas. Hoje são pessoas a desaparecer, desenhadas a traço fino como se bastasse passar uma borracha sobre o corpo e nada mais restasse. Mas resta. Rostos de casas vazias, árvores que se vestem e despem conforme a estação, só as pessoas não. Mede-se o tempo não pelas folhas do calendário, que essas há muito já voaram, talvez para Espanha, talvez com sorte há alguém que as apanha. No tempo (ainda) manda o relógio da Torre altiva, de olhos postos no céu e de vigia na terra. Quanta história ali se encerra. Quanta gente ali se enterra. Entre o Estio que derretia as pedras da calçada, depois o frio que não perdoava, iam os dias passando em permanente mutação. Entre o inverno e o verão não havia outra estação. Havia dia e noite, nos intervalos nada cabia, somente a noite e dia. O anoitecer e o amanhecer. O sol e a lua. A minha rua e a tua. Era um bairro gigante, sem portas fechadas, só paredes caiadas com vontade de receber. Não precisávamos bater: é entrar, se faz favor, que aqui vende-se amor, é entrar, se faz favor… Hoje as portas estão fechadas. Já não há amor para dar, que é feito, alguém me diz por favor? Quero criar uma lei que proíba os lugares de ficarem sem pessoas e as pessoas sem os lugares. Fechar a porta à chave e proibir as saídas, proibir as partidas, proibir as despedidas. Hoje sou quem manda, assomo-me à varanda e grito com fulgor: daqui ninguém sai, quero ver as portas abertas, cansada das ruas desertas e quero casas cheias de cor. Alguém me dê ouvidos, por favor. 
 
Catarse é um termo de origem filosófica com o significado de limpeza ou purificação pessoal. O termo provém do grego “kátharsis” e era utilizado por Aristóteles para designar o efeito causado no público durante e após a representação de uma tragédia grega.
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texto: Andreia Costa
foto: https://www.facebook.com/#!/groups/114896141863483/ - Ana Morão/MONTALVÂO - Capital do Universo

 

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