Praxe, do grego prâksis, «acção», pelo latim praxe-, «prática». Significa «aquilo que se pratica habitualmente; prática; sistema; uso estabelecido; regra; etiqueta; execução; realização». Existe a expressão "praxe académica", que são «costumes e convenções usadas por estudantes mais velhos de uma instituição do ensino superior, de forma a permitir a integração dos mais novos no meio académico» (in "Grande Dicionário da Língua Portuguesa", Porto Editora).
No já longínquo ano de 1985, "caloiro", apresentei-me na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa para o início das aulas. Um grupo de jovens, presumo que da confraria académica "Tertvlia Libertas", que organiza a "Receptio ad Caloirvm", trajados a rigor, cercaram-me aos gritos de "caloiro, caloiro!", munidos de ovos, farinha e marcadores, preparados para me praxarem. Perante a minha firme recusa, após algumas ameaças mais ou menos veladas e muita pressão dos "doutores", dado que estava fardado (a única vez em que andei fardado em Lisboa, e não por acaso), depois de muito claramente ter frisado que sentaria no chão o primeiro que me sujasse a farda, a coisa ficou por aí. Ainda que sem a benção da praxe, não deixei de me integrar de forma satisfatória na vida da academia, de me divertir e de aí cimentar amizades que perduram até hoje.
Em 2010, de novo "caloiro", desta feita na Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico de Tomar, onde julgo ter sido tomado por pai de uma jovem colega que me acompanhava, presumo que devido ao ar grave e sério de "pater familias", não fui incomodado. Ela também, enquanto se manteve ao meu lado: na primeira vez em que a deixei só, ao regressar, estava de cara pintada e cabelo coberto de farinha, a ser praxada de modo que me pareceu ser mais assédio sexual do que outra coisa.
A praxe, nos moldes que presenciei, tanto em 1985 como em 2010, não me convenceu enquanto meio de recepção e integração dos novos estudantes, como propalam alguns dos seus defensores. Pareceu-me coisa tonta e ociosa, insultuosa e degradante na maioria dos casos, de uma futilidade que me incomodou. Andar com diversas partes do corpo pintadas e a cabeça cheia de farinha, ovos, vinagre ou qualquer outra substância, envergando peças de roupa femininas ou seminú, realizar tarefas mais ou menos idiotas, como se fora carnaval, a que também não acho particular graça, não cabe na minha definição de divertimento. Mas isso sou eu.
Aos outros reconheço e defendo o direito de se divertirem onde, quando e como bem entenderem, dentro do respeito dos direitos humanos mais elementares, dentro do respeito da lei. Fora disso, e têm em mim não um defensor mas um acérrimo opositor. Mas fora disso já não falamos de praxe, falamos de outra coisa qualquer.
Vem tudo isto a propósito da chamada "tragédia do Meco", acerca da qual não tenho ainda opinião formada, em particular quanto ao facto de ter ou não resultado de algo que envolva praxe académica. O que sei é que perante uma tragédia há sempre um sentimento de culpa, por absurdo que seja, por injusto que seja. Manda a caridade, no sentido cristão do termo, que se poupem as pessoas envolvidas a mais sofrimento. Um crime é sempre uma tragédia, mas uma tragédia não resulta sempre de um crime. Pode resultar de uma fatalidade impossível de prever ou evitar, mas em regra vem da imprudência, do desafio, ou do tão juvenil sentido da invencibilidade e do gosto por ir além dos limites impostos. Mas a tragédia pode e deve servir para alertar para o perigo, e assim prevenir que volte a suceder. Se procurarmos crimes onde devíamos ver a tragédia estamos a desviar-nos do essencial e a impedir que se leve a sério o perigo que causou a desgraça. As ondas do mar revolto e bruto não sabem o que fazem, mas a voracidade pública que clama cegamente por um "culpado" não pode ignorar que só aumenta a tragédia dos que a sofreram...
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