Cavaco Silva, naquele registo
grave e sério, postura de patrício romano passeando pelos corredores do poder a
impoluta túnica branca da sua superioridade moral, sempre acima do luso lodaçal
político, veio, mais uma vez, explicar aos que não compreendem os seus
silêncios, entre os quais me incluo, a razão de ser da sua sombria magistratura
de influência, servindo-se para isso do prefácio do livro “Roteiros VI”.
Tenta fazer-nos esquecer, ou
pensa fazê-lo, que foi Primeiro-Ministro entre 1985 e 1995, a pessoa que mais
tempo esteve na liderança do país desde o 25 de Abril, que governou com maioria
absoluta durante 8 anos, em tempo de vacas gordas, em que os fundos da união
europeia fluíam como maná dos deuses e se gastou como se não houvesse amanhã. Malhou
forte e feio em José Sócrates (e continua a malhar), muito contribuindo para a
sua queda, imputando quase exclusivamente a este todas as responsabilidades da
crise actual, fazendo tábua rasa da sua própria governação. Aliás, não se
esgota no papel de Primeiro-Ministro a sua responsabilidade: foi Ministro das
Finanças e Plano entre em 80/81, no VI Governo Constitucional, e, eleito pela
Assembleia da República, presidente do Conselho Nacional do Plano (órgão que
antecedeu o Conselho Económico e Social), que dava pareceres sobre as Grandes
Opções do Plano.
Escreve Cavaco Silva que,
aquando da sua última eleição, assumiu perante os Portugueses o compromisso de “falar
verdade, exercer uma magistratura activa e apontar com clareza linha de rumo e
caminhos de futuro”. Acrescenta que a situação do país impõe que o Presidente
da República não se deixe influenciar pelo ruído mediático ou pressões, nem se
deixe arrastar por pulsões emocionais ou afectar pelas tensões que surgem nos
tempos de crise. Continua dizendo que na atual conjuntura de crise seria fácil
tirar partido de uma magistratura que não tem responsabilidades executivas
directas para, "através de declarações inflamadas na praça pública,
satisfazer os instintos de certa comunicação social, de alguns analistas
políticos e de muitos daqueles que pretendem contestar as instituições".
Ou seja: verdade, acção e
apontar caminhos, mas com pezinhos de lã, sem fazer muitas ondas, sem se
emocionar. Não me passa pela cabeça que Cavaco Silva ande a vociferar
impropérios aos quatro ventos e muito menos que se queira substituir ao Governo
e ao Parlamento mas que, com o argumento da manutenção da sacrossanta
estabilidade das instituições, se limite a conversas particulares com o
Governo, partidos e parceiros sociais, a mandar bitaites no Facebook ou a
justificar-se em prefácios de livros, parece-me muito curto.
Vivemos tempos difíceis, de
inquietação e desconfiança. Perante o descalabro da credibilidade de Governo, Parlamento
e partidos, o povo português precisa de um farol, de alguém que se faça ouvir
acima dos soundbytes e da demagogia, seja
ela política ou popular. Precisamos de alguém que lidere pelo exemplo, que
intervenha e dê voz ao nosso descontentamento. Isso não passa, como alguns
defendem, por derrubar governos ou hostilizar abertamente seja quem for. Mas
aquilo que em privado diz aos seus interlocutores deveria afirmar alto e bom
som. As críticas que não se coíbe de fazer às instituições europeias, serviriam
bem de carapuça a algumas cabeças nacionais,
Este prefácio não constitui
para mim novidade alguma, nem, presumo eu, para ninguém que não ande no mundo
da lua. Se algo de positivo se pode dizer de Cavaco Silva é que é coerente. A
sua visão redutora e miudinha das funções presidenciais não é de agora, e neste
particular, aquando da sua eleição, só foi enganado quem quis. Mas isso coloca
outra questão: afinal o que temos nós? Um Presidente da República ou um Mordomo
da República? É que de um Presidente eu espero iniciativa e intervenção, dentro
dos limites impostos pela Constituição, e o silêncio não consta desse rol, e
não discrição e apagamento, coisa mais própria de mordomo subserviente de casa
senhorial. Ficam-lhe bem o cerimonial, o fato e as luvas brancas, mas não foi
para isso que foi eleito. Vou mais longe: se é para isto que elegemos um Presidente
da República mais vale alterar a Constituição e prescindir das suas funções
porque, para decorar proas, já cá temos gente e cargos que cheguem!
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