domingo, 10 de março de 2013

O Mordomo da República



Cavaco Silva, naquele registo grave e sério, postura de patrício romano passeando pelos corredores do poder a impoluta túnica branca da sua superioridade moral, sempre acima do luso lodaçal político, veio, mais uma vez, explicar aos que não compreendem os seus silêncios, entre os quais me incluo, a razão de ser da sua sombria magistratura de influência, servindo-se para isso do prefácio do livro “Roteiros VI”.

Tenta fazer-nos esquecer, ou pensa fazê-lo, que foi Primeiro-Ministro entre 1985 e 1995, a pessoa que mais tempo esteve na liderança do país desde o 25 de Abril, que governou com maioria absoluta durante 8 anos, em tempo de vacas gordas, em que os fundos da união europeia fluíam como maná dos deuses e se gastou como se não houvesse amanhã. Malhou forte e feio em José Sócrates (e continua a malhar), muito contribuindo para a sua queda, imputando quase exclusivamente a este todas as responsabilidades da crise actual, fazendo tábua rasa da sua própria governação. Aliás, não se esgota no papel de Primeiro-Ministro a sua responsabilidade: foi Ministro das Finanças e Plano entre em 80/81, no VI Governo Constitucional, e, eleito pela Assembleia da República, presidente do Conselho Nacional do Plano (órgão que antecedeu o Conselho Económico e Social), que dava pareceres sobre as Grandes Opções do Plano.

Escreve Cavaco Silva que, aquando da sua última eleição, assumiu perante os Portugueses o compromisso de “falar verdade, exercer uma magistratura activa e apontar com clareza linha de rumo e caminhos de futuro”. Acrescenta que a situação do país impõe que o Presidente da República não se deixe influenciar pelo ruído mediático ou pressões, nem se deixe arrastar por pulsões emocionais ou afectar pelas tensões que surgem nos tempos de crise. Continua dizendo que na atual conjuntura de crise seria fácil tirar partido de uma magistratura que não tem responsabilidades executivas directas para, "através de declarações inflamadas na praça pública, satisfazer os instintos de certa comunicação social, de alguns analistas políticos e de muitos daqueles que pretendem contestar as instituições".

Ou seja: verdade, acção e apontar caminhos, mas com pezinhos de lã, sem fazer muitas ondas, sem se emocionar. Não me passa pela cabeça que Cavaco Silva ande a vociferar impropérios aos quatro ventos e muito menos que se queira substituir ao Governo e ao Parlamento mas que, com o argumento da manutenção da sacrossanta estabilidade das instituições, se limite a conversas particulares com o Governo, partidos e parceiros sociais, a mandar bitaites no Facebook ou a justificar-se em prefácios de livros, parece-me muito curto.

Vivemos tempos difíceis, de inquietação e desconfiança. Perante o descalabro da credibilidade de Governo, Parlamento e partidos, o povo português precisa de um farol, de alguém que se faça ouvir acima dos soundbytes e da demagogia, seja ela política ou popular. Precisamos de alguém que lidere pelo exemplo, que intervenha e dê voz ao nosso descontentamento. Isso não passa, como alguns defendem, por derrubar governos ou hostilizar abertamente seja quem for. Mas aquilo que em privado diz aos seus interlocutores deveria afirmar alto e bom som. As críticas que não se coíbe de fazer às instituições europeias, serviriam bem de carapuça a algumas cabeças nacionais,

Este prefácio não constitui para mim novidade alguma, nem, presumo eu, para ninguém que não ande no mundo da lua. Se algo de positivo se pode dizer de Cavaco Silva é que é coerente. A sua visão redutora e miudinha das funções presidenciais não é de agora, e neste particular, aquando da sua eleição, só foi enganado quem quis. Mas isso coloca outra questão: afinal o que temos nós? Um Presidente da República ou um Mordomo da República? É que de um Presidente eu espero iniciativa e intervenção, dentro dos limites impostos pela Constituição, e o silêncio não consta desse rol, e não discrição e apagamento, coisa mais própria de mordomo subserviente de casa senhorial. Ficam-lhe bem o cerimonial, o fato e as luvas brancas, mas não foi para isso que foi eleito. Vou mais longe: se é para isto que elegemos um Presidente da República mais vale alterar a Constituição e prescindir das suas funções porque, para decorar proas, já cá temos gente e cargos que cheguem!

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