segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Mais do mesmo, ou o eterno ladrar dos cães às caravanas que passam

Perdoem-me o regresso, após algum tempo de ausência, com um assunto tão árido mas que ao mesmo tempo me é tão caro: a análise do peso, ou a falta dele, dos valores da abstenção e dos votos em branco nos resultados das eleições.

E volto à carga na sequência da divulgação dos resultados da eleição para a Assembleia Legislativa dos Açores e do consequente desfraldar de bandeiras por parte do partido vencedor, no caso vertente o Partido Socialista, com maioria absoluta, seguido dos costumeiros tonitruantes discursos de vitória.

Ainda o escrutínio das urnas não estava encerrado e já José Sócrates, Secretário-Geral do PS, tecia loas a uma "grande e expressiva vitória", a "consagração de uma carreira política e de uma governação que orgulha todos os socialistas portugueses", considerando que «estas são as primeiras de uma série de eleições que se vão disputar no país". Por seu lado, e segundo notícia da Agência Lusa, Carlos César, líder do PS/Açores, afirmou que "vencer com maioria absoluta, vencer com cerca de 20 pontos de vantagem para o segundo partido mais votado é, em qualquer região e em qualquer país, uma grande vitória". Carlos César referiu-se, também, à abstenção - que atingiu o recorde de 53,2 por cento - para dizer que estes valores não se justificam apenas pela desactualização dos cadernos eleitorais. "A abstenção foi elevada e houve uma quebra significativa de mobilização e de motivação nestas eleições em virtude da presunção de vitória que havia à volta do PS", afirmou. Os partidos com mais votos têm menos responsabilidades na abstenção, alegou Carlos César, para quem, o que conta, em democracia, "são as pessoas que votam em dia de eleições".

Remeter parte da responsabilidade da elevada taxa de abstenção para a desactualização dos cadernos eleitorais, factor que se me afigura largamente exagerado, ao serviço de propósitos bem claros, ou para a presunção de vitória do PS, que teria afastado as pessoas das urnas, soa-me a desculpa de mau pagador. E dizer que, em democracia, o que conta são as pessoas que votam, parece-me ser uma flagrante falta de sentido de Estado e de honestidade política. Não sei ainda o que vai ser dito e escrito sobre esta frase infeliz, mas quanta tinta não correria se os professores viessem dizer que apenas os alunos com notas positivas contam, ou os médicos afirmarem o mesmo em relação aos doentes com hipóteses de sobreviver. É que para mim, a frase proferida por Carlos César e as que no campo das hipóteses absurdas aqui sugeri, estão num mesmo plano. Passamos desde hoje, na douta opinião de Carlos César, a ter cidadãos de primeira e de segunda: os que votam e os que o não fazem.

Passando para o plano nacional, se analisarmos a taxa de abstenção em eleições legislativas desde 1975, veremos um crescente e preocupante crescimento da mesma, com a série negra a ser interrompida, aqui e ali, por razões conjunturais (o caso das eleições de 1980 e 2005):

ANO

%

ANO

%

ANO

%

1975

8,34

1983

22,21

1995

33,70

1976

16,47

1985

25,84

1999

38,91

1979

17,13

1987

28,43

2002

38,52

1980

16,06

1991

32,22

2005

35,74

O que me leva a outra questão: qual é a legitimidade do poder resultante de uma eleição em que mais de metade dos eleitores se demite do seu dever de votar? E não falo da legitimidade legal, mais do que garantida por um bloco central que se perpetua em conveniente e conivente alternância, sem alterar uma Lei Eleitoral obsoleta, que não serve os interesses do povo português, mas se ajusta como uma luva aos comezinhos interesses partidários. Falo de legitimidade moral e ética, falo de, por uma vez, um político ter vergonha na cara e assumir que o modelo eleitoral ora vigente está caduco e que o povo português já não acredita neste nem nos Partidos da nossa praça, dar a mão à palmatória e reconhecer que a sua mensagem política não chegou aos eleitores, aceitando como sua parte da culpa deste descalabro, em vez de enterrar a cabeça na areia e fazer de conta, num eterno Alice no País das Maravilhas.

Permitam-me que termine este alinhavo dizendo que o mesmo não é um libelo acusatório contra o PS em geral ou contra Carlos César em particular: por outras bocas, de outros partidos, já antes ouvimos, e ouviremos no futuro, dislates de igual teor e o mesmo ladrar dos cães enquanto a caravana passa.