Perdoem-me o regresso, após algum tempo de ausência, com um assunto tão árido mas que ao mesmo tempo me é tão caro: a análise do peso, ou a falta dele, dos valores da abstenção e dos votos em branco nos resultados das eleições.
E volto à carga na sequência da divulgação dos resultados da eleição para a Assembleia Legislativa dos Açores e do consequente desfraldar de bandeiras por parte do partido vencedor, no caso vertente o Partido Socialista, com maioria absoluta, seguido dos costumeiros tonitruantes discursos de vitória.
Ainda o escrutínio das urnas não estava encerrado e já José Sócrates, Secretário-Geral do PS, tecia loas a uma "grande e expressiva vitória", a "consagração de uma carreira política e de uma governação que orgulha todos os socialistas portugueses", considerando que «estas são as primeiras de uma série de eleições que se vão disputar no país". Por seu lado, e segundo notícia da Agência Lusa, Carlos César, líder do PS/Açores, afirmou que "vencer com maioria absoluta, vencer com cerca de 20 pontos de vantagem para o segundo partido mais votado é, em qualquer região e em qualquer país, uma grande vitória". Carlos César referiu-se, também, à abstenção - que atingiu o recorde de 53,2 por cento - para dizer que estes valores não se justificam apenas pela desactualização dos cadernos eleitorais. "A abstenção foi elevada e houve uma quebra significativa de mobilização e de motivação nestas eleições em virtude da presunção de vitória que havia à volta do PS", afirmou. Os partidos com mais votos têm menos responsabilidades na abstenção, alegou Carlos César, para quem, o que conta, em democracia, "são as pessoas que votam em dia de eleições".
Remeter parte da responsabilidade da elevada taxa de abstenção para a desactualização dos cadernos eleitorais, factor que se me afigura largamente exagerado, ao serviço de propósitos bem claros, ou para a presunção de vitória do PS, que teria afastado as pessoas das urnas, soa-me a desculpa de mau pagador. E dizer que, em democracia, o que conta são as pessoas que votam, parece-me ser uma flagrante falta de sentido de Estado e de honestidade política. Não sei ainda o que vai ser dito e escrito sobre esta frase infeliz, mas quanta tinta não correria se os professores viessem dizer que apenas os alunos com notas positivas contam, ou os médicos afirmarem o mesmo em relação aos doentes com hipóteses de sobreviver. É que para mim, a frase proferida por Carlos César e as que no campo das hipóteses absurdas aqui sugeri, estão num mesmo plano. Passamos desde hoje, na douta opinião de Carlos César, a ter cidadãos de primeira e de segunda: os que votam e os que o não fazem.
Passando para o plano nacional, se analisarmos a taxa de abstenção em eleições legislativas desde 1975, veremos um crescente e preocupante crescimento da mesma, com a série negra a ser interrompida, aqui e ali, por razões conjunturais (o caso das eleições de 1980 e 2005):
% | ANO | % | ANO | % | |
1975 | 8,34 | 1983 | 22,21 | 1995 | 33,70 |
1976 | 16,47 | 1985 | 25,84 | 1999 | 38,91 |
1979 | 17,13 | 1987 | 28,43 | 2002 | 38,52 |
1980 | 16,06 | 1991 | 32,22 | 2005 | 35,74 |
O que me leva a outra questão: qual é a legitimidade do poder resultante de uma eleição em que mais de metade dos eleitores se demite do seu dever de votar? E não falo da legitimidade legal, mais do que garantida por um bloco central que se perpetua em conveniente e conivente alternância, sem alterar uma Lei Eleitoral obsoleta, que não serve os interesses do povo português, mas se ajusta como uma luva aos comezinhos interesses partidários. Falo de legitimidade moral e ética, falo de, por uma vez, um político ter vergonha na cara e assumir que o modelo eleitoral ora vigente está caduco e que o povo português já não acredita neste nem nos Partidos da nossa praça, dar a mão à palmatória e reconhecer que a sua mensagem política não chegou aos eleitores, aceitando como sua parte da culpa deste descalabro, em vez de enterrar a cabeça na areia e fazer de conta, num eterno Alice no País das Maravilhas.
Permitam-me que termine este alinhavo dizendo que o mesmo não é um libelo acusatório contra o PS em geral ou contra Carlos César em particular: por outras bocas, de outros partidos, já antes ouvimos, e ouviremos no futuro, dislates de igual teor e o mesmo ladrar dos cães enquanto a caravana passa.
1 comentário:
bem dito!!!!!
abç
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