 O rapaz chegou do mundo dos sonhos numa barca de frio e sono, a voz do pai a chamá-lo, bamos lá a lebantar que já são horas, de manhã é que se começa o dia e ainda é preciso carregar a burra. Lavou a cara na bacia de esmalte, a água como lâminas, ferindo-lhe a face imberbe. Migou o pão de rolão para a malga de café de cevada ralo, e outra vez o pai, vê se cinchas bem a burra e pões a carga a jeito de não cair, ainda tens muito que andar hoje.
 O rapaz chegou do mundo dos sonhos numa barca de frio e sono, a voz do pai a chamá-lo, bamos lá a lebantar que já são horas, de manhã é que se começa o dia e ainda é preciso carregar a burra. Lavou a cara na bacia de esmalte, a água como lâminas, ferindo-lhe a face imberbe. Migou o pão de rolão para a malga de café de cevada ralo, e outra vez o pai, vê se cinchas bem a burra e pões a carga a jeito de não cair, ainda tens muito que andar hoje.Era ainda escuro lá fora, e se houvesse relógio lá em casa veria que era cinco horas da manhã.
Saiu para a rua calcando o codo que estalava debaixo dos tamancos e dirigiu-se à loja, para cinchar a burra e arrumar a carrada de tapetes e mantas de trapo que a mãe tinha tecido, num pam-pam de madeiras de tear a bater pela noite dentro, à luz da candeia de azeite.
Bais para o lado da Régua, que eu bou pra Crasto Daire, dizia-lhe o pai, num te esqueças de ir à Quinta da Pacheca, que da última bez que lá estibe a senhora pediu-me pra lhe lebar tapetes quando por lá fosse outra bez.
Abalou caminho abaixo, mãos enregeladas, em cuidados de equilibrista para não escorregar no gelo, ao lado da burra, e assim seria a jornada toda se lhe não aliviasse a carga com as vendas que fosse fazendo.
Partia para quinze dias, a bater quintas e aldeias entre Lamego, Régua, e Santa Marta de Penaguião, saco de chita a tiracolo com um naco de pão, uma mão cheia de figos secos e outra de azeitonas para os primeiros dias, para os restantes teria que vender alguma coisa antes de poder comprar mais pão e azeitonas, talvez um naco de toucinho, se a venda corresse bem. A dormida seria onde lhe dessem abrigo, em qualquer loja, com sorte talvez houvesse palha fresca onde se acostar.
Escrevi esta estória numa tarde em que surpreendi o meu filho a deitar para o caixote do lixo metade de uma sanduiche. Incomoda-me o desperdício, muito mais quando esse desperdício é de comida. E para que ele entendesse que isso me incomoda e as razões desse incómodo, imprimi a estória numa folha A3 e colei-lha na porta do quarto.
As personagens desta estória têm nome: o rapaz chama-se António e o pai Manuel. São o meu pai e o meu avô paterno, já falecido. Com 10 ou 11 anos de idade, ao sair da Escola Primária, foram assim muitos dos dias do meu pai. Dias de frio e névoa, dias em que a sopa era de urtigas, porque não havia couves, em que sozinho tinha que calcorrear cento e muitos quilómetros vendendo tapetes e mantas de trapo que as mulheres da casa teciam, único meio de subsistência para quem não tinha um palmo de terra a que chamar seu. Era isso ou a jorna para qualquer lavrador de posses ou para as quintas do Douro, durante as vindimas ou a apanha da azeitona, a troco de dez réis de mel coado e de uma sardinha e um naco de broa ao almoço. Tempo duros, tempos que tanto o meu avô Manuel como o meu pai fizeram questão de me descrever.
Acho que o meu filho entendeu o recado.
Glossário:
Pão de rolão: pão confeccionado a partir do rolão, a parte mais grossa da farinha de trigo, mas superior ao farelo;
Malga: tigela;
Loja: piso térreo, onde se guarda o gado, as colheitas e as alfaias agrícola;
Cinchar: apertar a cincha ou cilha, correia larga ou faixa de tecido forte, fios torcidos, couro cru ou sola, e até de borracha entelada, que passa sob a barriga, para segurar a sela ou a carga dos animais;
Codo: gelo grosso, resultante da acção das geadas;
Tamancos: calçado rústico, de couro grosseiro e sola de madeira;
Jorna: trabalho temporário em que o salário é diário.
As personagens desta estória têm nome: o rapaz chama-se António e o pai Manuel. São o meu pai e o meu avô paterno, já falecido. Com 10 ou 11 anos de idade, ao sair da Escola Primária, foram assim muitos dos dias do meu pai. Dias de frio e névoa, dias em que a sopa era de urtigas, porque não havia couves, em que sozinho tinha que calcorrear cento e muitos quilómetros vendendo tapetes e mantas de trapo que as mulheres da casa teciam, único meio de subsistência para quem não tinha um palmo de terra a que chamar seu. Era isso ou a jorna para qualquer lavrador de posses ou para as quintas do Douro, durante as vindimas ou a apanha da azeitona, a troco de dez réis de mel coado e de uma sardinha e um naco de broa ao almoço. Tempo duros, tempos que tanto o meu avô Manuel como o meu pai fizeram questão de me descrever.
Acho que o meu filho entendeu o recado.
Glossário:
Pão de rolão: pão confeccionado a partir do rolão, a parte mais grossa da farinha de trigo, mas superior ao farelo;
Malga: tigela;
Loja: piso térreo, onde se guarda o gado, as colheitas e as alfaias agrícola;
Cinchar: apertar a cincha ou cilha, correia larga ou faixa de tecido forte, fios torcidos, couro cru ou sola, e até de borracha entelada, que passa sob a barriga, para segurar a sela ou a carga dos animais;
Codo: gelo grosso, resultante da acção das geadas;
Tamancos: calçado rústico, de couro grosseiro e sola de madeira;
Jorna: trabalho temporário em que o salário é diário.
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imagem: sleekfreak
imagem: sleekfreak
 
1 comentário:
Vim pela mão da Io.
Gostei de andar por aqui.
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