
Ninguém me escreveu epitáfio ou ergueu memorial. Aqui jazo em águas rasas, ao sabor das correntes que me arrastam e de novo me trazem de volta à margem, num perpétuo movimento sem destino nem sentido.
Serviram-se de mim enquanto lhes aprouve. Nas mãos de barqueiro experiente transportei carga, animais e pessoas, ligando as duas margens do único rio que conheci e amei. De quantas despedidas e reencontros fui testemunha? Nem eu sei, recordo mais as segundas do que as primeiras, que a memória das barcas é como a dos homens, selectiva. Vivi as cheias e o desespero, as secas e de novo o desespero.
Construíram a ponte, e até na construção da minha ruína me acharam utilidade: transportei operários, areia, cimento, pedra.
E um dia o barqueiro não veio. Nem nos dias seguintes, até hoje. Fiquei de remos pendendo inúteis no bojo, a amarra desfazendo-se, perdi primeiro as cores que me decoravam, o meu nome lentamente desvanecendo-se, o madeirame estalando ao sol, abrindo brechas, a água tomando conta do meu corpo, e, quando veio a última cheia, finalmente soçobrei.
Só a minha proa permanece como lápide, muda testemunha da minha memória.
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foto: josé carlos - barca do Arneiro, Nisa.
5 comentários:
Quem disse que as canoas (ou as embarcações, em geral) não têm memória?! Basta ler o teu post e o romance do José Mauro de Vasconcelos!
Beijinho, Magude!
Menino! Escreves bonito! ( como se diz por aqui) beijo
Obrigada e parabéns, magude!!
I love this picture.I wish I could read the text.Simple,beautiful.
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