Esta postagem tem um título, mas poderia ter outro: "Turismar: gabinete e terreno". Não procurem a palavra turismar no dicionário, não existe. Foi inventada pelos meus alunos do curso de "Turismo Ambiental e Rural", em 2010, significando "fazer turismo".
Apesar de já ter dado aulas na área do turismo, sou sobretudo um homem do terreno. Trabalho como Guia Turístico, algo que me dá muito prazer. Como a brincar costumo dizer, "Faço uma coisa que gosto e ainda me pagam". Neste trabalho tomamos como quase ninguém, e muito além da estatística, creio eu, o pulso à realidade do turismo em Portugal, em particular no segmento das viagens organizadas.
Este tipo de viagens, vulgarmente designadas por excursões, seguem um determinado padrão: têm a duração média de 2 dias (correspondentes a um fim-de-semana), grupos de cerca de 50 pessoas, com idade média a rondar os 65 anos, e decorrem sobretudo no centro e norte de Portugal (Aldeias de Xisto, Aldeias Históricas, Douro Vinhateiro, Minho) e no norte de Espanha (Galiza, Astúrias e Cantábria), e constam de um pacote que engloba visitas, alojamento e alimentação. Acerca destes 3 factores muito há a dizer, mas resumo:
a) visitas - normalmente em excesso, verdadeiramente querer meter o Rossio na Betesga. Muitas vezes os pacotes referem museus e monumentos onde é necessário pagar entrada, nunca incluída, sendo que em alguns locais os preços são absurdos.
b) alojamento: em 3 ou 4 estrelas (caso mais raro), em alguns casos com os estabelecimentos a terem uma estrela a mais do que merecem. Há de tudo, mas a qualidade média é razoável.
c) alimentação: completamente imprevisível, onde muitas vezes a falta de qualidade é "justificada" com o argumento do "regional". Em Portugal e em Espanha (pelo menos por cá os temperos são familiares) a qualidade varia entre o medíocre e o bom. Cá como lá, a pobreza das ementas é confrangedora; ir às Astúrias comer "Esparguete à Bolonhesa", em vez de uma "Fabada", ou ir ao Minho comer "Bifinhos com Cogumelos" em vez de "Sarrabulho", deixa-me sempre frustrado.
A "embrulhar" estes três factores há um quarto, que condiciona todos os outros: o preço dos pacotes. Como todas as transacções comerciais é um jogo, com três vértices: as agências, os organizadores e os clientes, todos a querer pagar o menos possível e a ganhar o máximo possível. Depois é a história do cobertor curto: quando se tapa a cabeça, descobrem-se os pés.
Exemplos: 5 dias nas Astúrias e Cantábria, por 230€ ou 2 dias no Douro Vinhateiro por 130€. No primeiro caso estamos a falar de 4 dormidas com pensão completa, no segundo de 1 dormida com pensão completa e uma viagem de barco entre Régua e Barca de Alva, com pequeno-almoço, Porto de Honra e almoço servidos a bordo. Tentem fazer o mesmo a pagar tarifas de balcão e vejam a diferença. Mesmo a preços de agência, as margens são mínimas.
Outras considerações têm de ser tidas em conta:
a) a informação dos clientes: a maioria adquire um pacote sem saber muito bem ao que vai. A quase totalidade interessa-se apenas pelo "bonito" e pelo "típico", e não quer saber se a catedral é gótica ou românica ou que as catedrais góticas são altas porque os arcobotantes permitiram distribuir melhor as cargas dos edifícios.
b) o tempo perdido nas viagens: erro muito comum no planeamento dos pacotes. Ainda recentemente tive um serviço em que em 4 dias, não contando com a viagem de e para o nosso destino, sem visitas e quase sempre na mesma autoestrada, fizemos quase 800 quilómetros.
c) falta de tempo livre: ensinou-me a experiência que os clientes gostam de ter um período livre para deambularem à vontade, para fazerem algumas compras, sem pressões horárias. Uma manhã ou uma tarde, em viagens mais longas, ou 2 horas em viagens mais curtas, são suficientes. Este aspecto é quase sempre descurado por agências e organizadores.
Para quem está agora a iniciar-se na profissão, ou para os que pretendem vir a fazê-lo, algumas notas:
- preparem-se para aceitar trabalhos quase sem aviso prévio;
- façam a pesquisa que puderem acerca dos locais a visitar, informem-se acerca de tudo e um par de botas, porque vão precisar. Ás vezes invejo os colegas que fazem interpretação apenas num local. O resto de nós tem que saber de história, botânica, zoologia, arquitectura, enologia, gastronomia, política, desporto e sei lá mais o quê, porque alguém vai fazer-vos uma pergunta acerca de qualquer um destes assuntos.
- tomem por garantido que, sem serem pedidos nem achados na elaboração dos programas, vão receber reclamações acerca de tudo: o autocarro, a comida, a cama, o comando da televisão, o preço das entradas nos museus, o facto de ser necessário andar a pé nos centros históricos ou as estradas terem muitas curvas. Sorriam, mostrem-se solidários, tentem resolver o que for possível. Já agora: o cliente não tem sempre razão, ao contrário do que se diz por aí. Aí, sejam corteses mas firmes;
- preparem-se para a existência de "ovelhas negras": há sempre alguém num grupo que vai instigar os outros por uma razão qualquer. Tentem identificá-los rapidamente (costuma ser fácil) e encontrem um modo de esvaziar as suas intenções. Afagos ao ego costumam resultar;
- a grande maioria dos motoristas é simpática e prestável. Como em tudo, há excepções. Estudem as estradas, porque muitas vezes, para além de Guias Turísticos, vão também ter de servir de guia da ViaMichelin;
- dediquem algum tempo a obter informações sobre horários e tarifas de locais a visitar. Como já referi as visitas a museus ou monumentos raramente estão incluídas nos pacotes. Informem os clientes durante a viagem, saibam quantos desejam efectuar a visita e recolham o valor das tarifas para adquirirem os bilhetes. Facilitam a vida aos clientes, diminuem o tempo de espera e costuma ser mais barato;
- interajam o mais possível com os clientes. Durante a viagem, nos hotéis, nos restaurantes, o diálogo é de extrema importância. Isto não significa que são obrigados a saber contar anedotas ou a levar uma "pen" com música pimba para o autocarro;
- preparem um dossier para cada visita a realizar, com toda a informação necessária. Memorizem o máximo possível e evitem ler notas em frente aos clientes. Arquivem toda a informação recolhida para utilização futura.
Muito mais haveria a dizer, mas não quero ser cansativo, sendo que, mesmo assim, já escrevi um "lençol". Duas notas finais:
- aos clientes: informem-se melhor acerca dos produtos disponíveis em cada pacote. Respeitem os Guias, que estão lá para vos ajudar no que for possível, mas não são vossos criados. Sendo a cara das agências que representam, raramente são responsáveis pelos programas, pela qualidade dos hotéis e restaurantes ou pelo estado das estradas. Para que conste, normalmente apenas recebemos o programa completo de cada viagem na véspera da mesma.
- aos colegas, actuais e futuros: esta é uma profissão que nos realiza. Sobriedade, boa educação, senso-comum, sólida cultura geral, simpatia, empatia e disponibilidade são essenciais ao desempenho da nossa função. E se chegarem ao fim de um dia de serviço sem estarem cansados, mudem de profissão: não estão a fazer bem o vosso trabalho!